A pandemia foi o remédio perfeito para o pandemônio
Ainda há muito a se dizer sobre o isolamento social que vivemos por causa da pandemia de coronavírus. Entre tantas coisas, há um ponto importante e ainda pouco falado: a pandemia fez o mundo engolir a seco toda a raiva e indignação que tomou conta das ruas, praças e redes sociais nos últimos anos.
Da queda do muro de Berlim ao 11 de setembro, o mundo experimentou um relativo período de paz. Com o fim da Guerra Fria, a economia global evoluiu com relativa estabilidade e previsibilidade. Mas essa paz política e estabilidade econômica que o mundo experimentou em algumas décadas foram ao fim com a crise de 2008.
Dali adiante, todo o globo entrou em uma espiral de indignação cidadã com a economia, gerando revoltas populares contra os modelos políticos vigentes e revoluções contra sistemas culturais aparentemente indestrutíveis.
Com isso, podemos dizer que apesar, dos ataques terroristas e guerras no Oriente Médio, a década de 2000 foi relativamente estável, globalmente falando. Principalmente se comparada à de 2010 que a emergência do coronavírus pôs fim com hashtag e lockdown. Para falar a verdade, o surgimento do novo coronavírus encerrou uma longa década que se iniciou lá em 2008.
Quando estourou a bolha financeira do mercado imobiliário norte-americano o mundo se viu em uma crise econômica e política que, entre marolas e maremotos, mexeu com os cinco continentes..
Uma Década em Fúria
“Os Ventos do Norte”
Um desses processos desencadeados diretamente pela crise de 2008 foi o "Occupy" que levou as classes médias e pobres às praças públicas de milhares de cidades no mundo. Entre as milhares, “Occupy Wall Street”, em Nova York, foi a mais emblemática por se dar no coração do sistema financeiro em crise.
Enquanto isso, a União Europeia (UE) impunha duros pacotes financeiros para conter a crise dos países economicamente mais frágeis do bloco. Isso a fez passar por um teste de fogo quando a Grécia, à contragosto dos gregos, teve que engolir um duro regime de austeridade fiscal dali adiante. Entretanto, enquanto a UE foi capaz de manter o bloco unido diante da crise grega, não teve muita habilidade para impedir que o Reino Unido saísse dele e, com isso, o Brexit vingasse.
As Flores do Deserto
Em meio a esse caldeirão de indignados, a Primavera Árabe fez califados, ditaduras e sistemas políticos implodirem no Oriente Médio e Norte da África.Tudo começou na dramática auto-imolação que um comerciante da capital tunisiana realizou em protesto a mais um aumento de impostos. Disso, como um rastilho de pólvora, o mundo árabe se viu incendiado por protestos, ocupações, guerras e golpes de estado.
Dessa tempestade no deserto, três grandes consequências diretas foram a queda da ditadura egípcia de Hosni Mubarak, a guerra sem fim na Síria e a dramática volta do tráfico de escravos africanos no Saara. Esta última, após a queda do presidente líbio Muahammar Gadaffi pelas forças da OTAN, sob ordens de Barack Obama.
Tudo isso agudizou a "crise dos refugiados" que, a bem da verdade, só ganhou repercussão mundial quando deixou de ser um problema só do Oriente Médio e passou a ser também uma preocupação para o Velho Mundo.
As Veias Abertas
Aqui na América Latina e Caribe a gente tem ondas de protestos e manifestações em massa de tempos em tempos.
No Brasil a gente viu as Jornadas de Junho de 2013, que pariram as manifestações pelo Impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Em resposta, também a esquerda colocou seu bloco na rua, principalmente à época do impeachment e da prisão do ex-presidente Lula. Depois de tanto “Não vai ter Copa”, “Não vai ter Golpe” e “Lula Livre” o que se viu foi copa, impeachment e prisão.
O resultado disso tudo foi a esquerda entrando em uma ressaca política que a impede de agir organizadamente até hoje. Enquanto isso a direita aproveitou esse vácuo para privatizar o direito à rua que as Jornadas de Junho de 2013 resgatou. Dessa privatização, eclodiram vários movimentos e frentes organizadas que são hegemônicas nos protestos de rua e de rede. O poder não permite vácuo.
Espremidos entre a euforia da direita e a ressaca da esquerda, servidores públicos estaduais do Brasil todo tiveram violentas manifestações para barrar medidas de austeridade impostas pela União. A farsa dramática foi tamanha que parecia um remake tropical do que houve na na Grécia a partir de outra União, a Europeia. Nesse roteiro, o argumento era o mais neoliberal de todos: aproveitar-se das crises para tornar o impossível necessário.
Em 2019 também Chile, Colômbia, Equador, Bolívia, Venezuela, Argentina, Haiti, México, Costa Rica e Nicarágua assistiram manifestações massivas. De pautas sociais, propondo uma reestruturação econômica, até, refundação do sistema político, as tais veias abertas parece agonizar para acabar com a fome, o desemprego, o genocídio negro e indígena.
Parece que após a onda de governos de esquerda na década de 2000, a revanche neoliberal chegou dando caixotes numa região dada a calotes, recebendo uma avalanche de revoltas populares de agradecimento.
Tigres e Dragões
Lá no Oriente Asiático não foi menos conturbado. Índia, Paquistão, Mianmar, Camboja, Coréia do Sul e até a China tiveram que lidar com rebeliões urbanas, revoltas populares e tentativas de golpes de estado antes da pandemia. No geral, foram mobilizadas por classe média consumidora ou escolarizada e que se via enganada por um modelo de ascensão social que o capitalismo-neoliberalismo-consumismo-pós-guerra-fria impôs aos tigres e dragões asiáticos.
Entre todas elas, Hong Kong era certamente a mais representativa por ser um desafio ao comunismo chinês manter-se politicamente coerente a um território que opera como uma democracia liberal do ocidente. O coronavírus foi o verdadeiro plot-twist do processo geopolítico que estava se desenrolando ali. No fim, sem grandes desgastes diplomáticos e mesmo bélicos, o dragão engoliu o sapo .
Todas essas perturbações mundo afora desde a crise de 2008 só mostra que estávamos vivendo uma década de rebeliões urbanas e populares. Algumas terminaram em massacres e chacinas, outras em golpes de estado, renúncias e revoluções. Muita gente especula o quanto o fator “redes sociais” foi ou não instrumento de desestabilização política dos governos e articulação popular sem precedentes para os cidadãos.
Embora algumas coisas tenham boas evidências e outras sejam mais fantasiosas, a medida e alcance dessas conjecturas é um tanto impalpável. Não por ser invisível, mas por estar além do nosso alcance. Mas há um invisível palpável.
Espirro: a mais eficaz bomba de efeito moral
O coronavírus foi o toque de recolher mais eficiente que o mundo viu desde as sirenes de bombardeio durante Segunda Grande Guerra (1939-45). Em três meses, uma bola felpuda colocou bilhões de "indignados" pra dentro de casa. Sem bomba de gás, sem bala de borracha, sem canhão de água, sem caveirão, sem tanque de guerra ou megafone. Bastou o espirro, a tosse e febre se converterem em milhares de caixões para todos se enfurnarem dentro de casa. Sem mais protestos, gritaria, pixo, quebra-quebra ou passeata.
Dali adiante, a quarentena nos fez apartados da convivência física, confinados dentro de casa, aterrorizados pelas pilhas de corpos em valas comuns, bombardeados por informações e desinformações, contaminados pelo medo e pela angústia e violados em nossas privacidades. Tudo isso graças à principal alternativa ao isolamento: a rede social.
Conectados como nunca para distrair o confinamento, nos vimos num daqueles castigos bíblicos. Depois de tantos anos usando a conectividade para promover arruaça, fomos condenados a usar as redes sociais e telecomunicação para viver em uma eterna quarentena. A desconfiança do ar nos levou a um confinamento no lar.
A grande ironia dessa história toda foi ver que a mesma geração que descobriu seu poder político como um animal biônico ultra-conectado, viu isso ruir quando um vírus a tornou um animal biológico ultra-confinado.
Mas a pergunta mais obscena disso tudo jamais deveria ser se o isolamento social era bom ou ruim na pandemia. Diante do vírus, isso é o que é. O que mais choca é como uma gente aparentemente tão furiosa voltou para casa com tanta facilidade. É quase como se o "Estado", os "Poderosos", "Os Brancos de Olhos Azuis" e os "1%" rissem da nossa cara como as mães que não correm atrás dos filhos porque sabem que “galinha de casa não se corre atrás”.
Por que nos isolamos tão facilmente?
O meu palpite é que a experiência global de quarentena, isolamento social e confinamento funcionou com tanta eficácia e rapidez porque, no fim das contas, as pessoas não gostam de mudanças bruscas. Só daquelas que sejam uma continuidade para algo um pouco melhor como resultado da situação anterior. E, mesmo assim, só depois de uma propaganda forte para convencer a saírem da onde estão para onde se promete chegar.
Essa humanidade que quinhentos anos de colonização europeia produziu através do cristianismo, da colonialismo e do capitalismo é uma humanidade bovina que só quer pastar em paz, quando tudo o que esse mundo que eles produziram não consegue ter é paz. Nada foi mais conveniente para a ordem local do que uma desordem global.
A pandemia foi o remédio perfeito para o pandemônio.
Este artigo foi escrito por Dessalín e publicado originalmente em Prensa.li.