Passo a passo
Este eletrodoméstico pode ser usado por crianças a partir dos oito anos e por pessoas com capacidades físicas, sensoriais ou mentais reduzidas”. Com estas palavras iniciais verdadeiramente encorajadoras, comecei a ler o manual da minha novíssima lavadora e secadora de roupas, minha mais recente aquisição, orgulhosa, nesta fase de vida que resolvi encarar meu dia a dia doméstico absolutamente só, gloriosamente autossuficiente!
Manual robusto, pensei, 60 páginas de como tirar o máximo proveito desse eletrodoméstico de ultima geração, programá-lo para exercer com inteligência (a dele) suas atividades, mas vamos lá e puxei um banquinho para ler próxima a minha oitava maravilha doméstica.
Empaquei na instalação, até porque teria precisado de uns dois anos de Engenharia para compreender os segredos e pegadinhas para finalizar esta fase com sucesso e achei melhor chamar a Assistência Técnica que me cobrou a visita e fez em minutos o que eu provavelmente teria levado anos, a famosa década perdida!
Voltei à frase inicial e me consolei porque afinal ela falava em uso, não em instalação. Animada, parti para a práxis, que também pouco revelava, uma verdadeira Esfinge, não facilitava as coisas, o desenho do manual não batia com a realidade do painel da máquina – comecei a me embananar com ordens e contra ordens, logo eu que tinha lido Gide em francês aos 15 anos e achado o máximo! Mas Nourritures Terrestres não dava qualquer dica, muito menos suas sequência, Les Nouvelles Nourritures!
Fui murchando, na minha incapacidade técnico-mecânica-digital e humilde, chamei de novo a Assistência Técnica, a roupa suja se acumulando... Veio o técnico, que me introduziu nos mistérios da Maravilha e zas,”Ela” funcionou ( verdade que nos primeiros tempos tinha que pegar meu caderninho de anotações pra não fazer nenhuma besteira!), pré lavou, lavou, enxaguou e secou com absoluta eficiência e competência.
Mas o melhor era o final, quando “Ela” avisava ter terminado todas suas tarefas com um musiquinha singela, era a crème de la crème! Enfim, a tarefa prosaica de lavar e secar roupa elevada a um nível superior, orgástico, quase como assistir O Ano Passado em Marienbad e entender de cara toda a complexidade onírica do Resnais ( tive que assistir 8 vezes – e a cada vez sair com uma visão diferente do filme!).
Devo dizer que depois dessa “experiência” – ou experimento? – doméstica, vi o meu cotidiano catapultado a um novo nível, dos iniciados. Mas, pelo sim, pelo não, estou pensando em chamar a Assistência Técnica para uma terceira rodada, a da manutenção, porque afinal o Manual destina umas quinze páginas ao assunto, usando termos absolutamente incompreensíveis como o manípulo do filtro da bomba! Pode?
Este artigo foi escrito por Eleonora Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.