Polêmica decisão judicial do Pará traz debate sobre trabalho escravo ao STF
STF vai ter que analisar o óbvio; Miséria econômica e social não justifica trabalho escravo Foto: Assessoria de Imprensa Prefeitura de Castanheiras
O STF vai analisar uma decisão tomada pelo TRF-1 a respeito de três fazendas no Pará. Nelas, entre abril de 2004 e maio de 2005, cerca de 50 trabalhadores receberam como alimentação carne podre, ficaram em alojamentos sem banheiros e consumiam água de rio, conforme relato de auditores fiscais do trabalho.
A alimentação, além de tudo, era descontada no salário. Ainda assim, os desembargadores daquele tribunal federal entenderam que os fatos se encaixam na realidade rural brasileira e absolveram os réus.
O Procurador Geral da República questionou e pediu a inconstitucionalidade da “diferenciação regional” frisando que o artigo 149 do Código Penal se aplica a todo do território nacional. O mencionado artigo tipifica como crime “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Vigência Sincrônica
A argumentação do PGR vai na direção correta. O princípio da Vigência Sincrônica estabelece que a lei tem vigência em todo o território nacional. Este princípio está positivado na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), logo em seu artigo 1º. A LINDB é chamada de Lex Legum, ou seja, norma sobre normas contendo dispositivos de sobredireito por conta da aplicação em todos os ramos da matéria.
Antes da LINDB, que data da década de 1940, havia o princípio da Vigência Progressiva, quando a lei poderia entrar em vigência em períodos diferentes dependendo da região do país. Mesmo assim, os desembargadores não seriam contemplados, pois a diferença seria somente a respeito do período de vigência e não sobre a interpretação da lei (hermenêutica). Portanto, nem fundamento do direito do início do século passado dá razão ao acórdão que absolveu os réus.
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Pode-se ir além. A Constituição tem como um de seus fundamentos a Dignidade da Pessoa Humana. Sobre o assunto, Barcellos(2002) conceitua serem condições dignas de existência e condições materiais que livre a pessoa da indignidade. Oliveira (2016) considera o referido fundamento como "sobreprincípio", condição pela qual não é permitida sequer a ponderação.
Outro fundamento a atacar a tese defendida pelo tribunal tem relação com o valor social do trabalho. Acaba sendo um retorno à própria questão da dignidade, uma vez que o trabalho é o meio para ter dignidade, exercer a cidadania. Por isso é norma de proteção ao trabalhador contra a exploração econômica sistemática, aproveitando-se da assimetria de forças entre a pessoa humana e quem detém os meios de produção, em outras palavras o denominado patrão.
Tratamento degradante
Aprofundando a análise do texto constitucional, o artigo 5º da Constituição, em seu inciso III, a determina que “ninguém será submetido a tortura e nem a tratamento desumano ou degradante”. Esse dispositivo repete em parte o que dispõe o item 2 do artigo 5º da Convenção Interamericana de Direitos Humanos ou Pacto de San Jose da Costa Rica (1969), regulamentado pelo Decreto nº 678/1992 e tem posição supralegal.
A contradizer ainda a decisão prolatada, há a Teoria do Mínimo Existencial como um desdobramento dos fundamentos já analisado. Por esta teoria, todos têm direito às condições mínimas de sobrevivência, o que inclui alimentação e saúde básica, devendo o Estado na impossibilidade do indivíduo do acesso a condições básicas fazer essa provisão. Conclui-se, inclusive, que não é aplicado o conceito da reserva do possível neste caso.
Por fim, podemos ainda recorrer às teses jusnaturalistas, cujos valores incluem também o direito à dignidade e mais a liberdade e a igualdade. Porém o STF não precisa chegar a tal nível de análise, pois o direito positivo fornece bases mais que suficientes para refutar a posição do TRF-1.
Uma última observação a respeito da inviabilidade (e o perigo) da adoção da visão de que as condições econômicas ou índices de desenvolvimento humano precários podem justificar condições degradantes de trabalhadores, famílias ou de quem quer que seja. A ausência do Estado como promotor do bem-estar – que é a sua obrigação – já é sentida pela falta de prestações positivas para amenizar a chocante desigualdade entre regiões do país em claro desafio ao direito mais básico. Se o Estado sequer coibir práticas abusivas por meio de seu sistema Judiciário, então estará consolidada a transgressão de normas e princípios basilares e iremos ruir como Estado de Direito Social.
Eu acredito que o STF não permitirá esse desatino.
Este artigo foi escrito por Renato Assef e publicado originalmente em Prensa.li.