Poliomielite: o Zé Gotinha perdeu?
Podia ser em qualquer lugar. Talvez já esteja acontecendo, em alguma localidade paupérrima do terceiro mundo. Por exemplo, no Brasil. Provavelmente, ninguém saberia.
Mas aconteceu em Nova York. A dita “capital do mundo”. E colocou o resto do planeta em alerta.
Algo emergiu dos esgotos da cidade e em mais quatro municípios vizinhos. Não foi nenhum lagarto mutante radioativo, sequer tartarugas ninjas ou mesmo um mísero aligátor, coisa encarada com naturalidade no sul dos Estados Unidos. A ameaça era invisível e muito, muito mais concreta.
Na segunda semana de setembro de 2022, Kathy Hochul, governadora do Estado de Nova York, convocou a imprensa e decretou Estado de Emergência. Numa cidade ainda abalada pelas milhares de vítimas do coronavírus, os oficiais de Saúde detectaram o temível Poliovírus.
Detectaram o quê?
Dependendo da sua idade, pode nem saber de quem se trata. Afinal, seus pais devem ter lhe levado, ainda criança, para tomar uma vacina na forma de gotinha. Além de um gosto engraçado, ela era melhor que as outras: não envolvia agulha! E lhe protegia contra alguma coisa que você talvez nem soube do que se tratava.
O inimigo da vez atingia principalmente crianças de até cinco anos. Tanto que a doença provocada por ele, a poliomielite, também era conhecida como paralisia infantil. Ela pode se manifestar de três modos diferentes: espinhal, onde ataca a medula; bulbar, cujo alvo é o tronco cerebral; ou a mais perversa, bulbospinal, atingindo tudo junto, num combo das trevas.
Os efeitos são variados. Os mais “inofensivos” causam paralisia e atrofia dos membros inferiores de suas vítimas. Casos mais graves atingem o funcionamento cerebral e até mesmo o sistema pulmonar. Há pessoas que vivem anos atreladas à máquinas que provêm sua respiração de modo artificial.
De gotinha em gotinha
Com facilidade para se espalhar em locais com pouca higiene, o Poliovírus provavelmente fez horrores durante séculos. Confundido com outras mazelas, seus primeiros registros oficiais datam do final do século XIX. Pouco tempo antes do nascimento daquele que dedicaria a vida para combatê-lo.
Em 1906, nascia na fria Bialystock, Rússia (hoje território polonês) o cientista Albert Sabin, que muito tempo depois, em 1960, entregou ao mundo a vacina que se tornou conhecida por seu nome, a popular Sabin, ou ainda a vacina da “gotinha”.
O Brasil foi um dos locais mais atingidos por surtos da Pólio. Há dois, particularmente notórios: em 1911, no Rio de Janeiro, onde pouco se pôde fazer; e em 1962, onde a vacina já existia, mas o governo da época não viu necessidade de fazer uma vacinação em massa. O resultado foi catastrófico. Como sempre, a população só pôde correr atrás do prejuízo quase um ano depois.
Terrível, mas não era exclusividade nossa. Muita gente mundo afora olhava para tal gotinha com um quê de desconfiança. Por sorte, a consciência sobre a importância da vacinação foi tomando corpo. O Brasil, acreditem, tornou-se modelo internacional de cobertura vacinal nas décadas seguintes.
A vacina criada por Albert Sabin é tão eficiente em sua atividade que muita gente nem dá conta da sua complexidade e de seu verdadeiro valor. Trabalhando com amostras de vírus vivos atenuados, ensina o corpo a se proteger contra o ataque; é uma das vacinas mais eficientes da História, com quase 100% de sucesso.
Campanhas anuais foram lançadas, e até um personagem carismático foi criado para incentivar a vacinação, o famoso Zé Gotinha. O Brasil chegou a 96% de cobertura vacinal, e o último caso registrado da Pólio por aqui foi no ano de 1989, na Paraíba.
Em 1994, a Organização Mundial de Saúde decretou o Brasil como zona livre do vírus. Coisa para se orgulhar. Então, por quê se preocupar com essa nova ameaça? Afinal, está lá em Nova York, longe daqui, não é mesmo?
O inimigo agora é outro
Não. Graças a toda uma geração que nunca viu ou ouviu falar sobre o quão terrível é a situação dos atingidos por várias doenças (entre elas, a Pólio), movimentos anti-vacina proliferaram, com mais eficiência que um resfriado.
Muitos papais e mamães acreditam que a vacina é besteira; A única função seria, por exemplo, o controle mental de seus filhos; geralmente orquestrado por um movimento Illuminati, nos escondendo que a Terra é plana. Talvez um experimento dos reptilianos. Ou de quem não acredita na eficiência da cloroquina contra a Covid-19.
Resultado: a cobertura vacinal contra a poliomielite esbarra agora em 67%. A pior desde os anos 1970. Se depender de boa parte desta geração, o Zé Gotinha, que venceu tantas batalhas, pode perder a guerra, devido a teorias completamente infundadas, egoístas e sem sentido. Sem contar na quase ausência de campanhas governamentais de vacinação. Mais um 7 a 1 pra nossa conta.
E se acha que Nova York está longe e estamos seguros, basta um infectado fazer um voo de 9h35m e desembarcar por aqui. A festa é garantida. As distâncias agora são absurdamente mais curtas, e dependendo da localidade, ainda somos bem incipientes em termos de higiene.
Em outras palavras, precisamos redobrar a atenção. Vacinar já quem não foi vacinado. Não só com a Sabin. Com todas as vacinas disponíveis. Boa parte de nossa população já entendeu a diferença vendo o decréscimo de vítimas fatais da Covid, depois do início da vacinação.
Deduzo que, como leitora ou leitor da Prensa, você seja uma pessoa bem informada e ciente da importância de toda e qualquer vacina. Em tese, este alerta não é para você. Mas pode ajudar. Aproveite o embalo, lembre a todos, inclusive o grupo de WhatsApp da família. Não custa. E podemos nos prevenir contra um surto que certamente virá.
Conhece alguém que seja contra vacinas? Ou quem fez sua parte direitinho? Conta pra gente. Estou esperando!
Eu volto!
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.