Por algum tempo, fechado dentro de mim
Por algum tempo, fechado dentro de mim, sem poder responder as perguntas que minha própria cabeça formulava, em um "mundo assombrado por demônios", tentei matá-lo. Não se tratava de reformular a imagem de Deus, tão insuficiente pra mim; eu não poderia viver em paz, diante de um complexo nietzschiano, em um universo onde existisse essa figura... Deus.
A sensação era de escapismo, de fraqueza, um atestado de mediocridade intelectual. A validação das violências que sofri, como indivíduo, pela leitura mais comum, perversa e vilipendiosa, da Bíblia, por exemplo. Este conjunto de livros que, se posto como convencionado até hoje pela maioria das instituições que se julgam detentoras do direto de interpretá-lo, executá-lo e fiscalizá-lo, garantindo sua suposta idoneidade, não valida minha existência e até mesmo advoga pelo meu extermínio.
É só "mais um" dos livros sagrados, mas é o mais sangrento dos documentos ocidentais (aqui, fico curioso para saber quais os argumentos dos que tanto acusam o Islamismo de extremismo religioso, mas se esquecem da colonização e da escravidão, impostas pelo Cristianismo, das cruzadas e da atual violência e intolerância religiosa carregada pelo neopentecostalismo).
Afinal, onde está Deus? Deixa contar sobre as últimas semanas. De tempos para cá, vi irmãos se despedirem pelo laço da morte, filho e pai se reaproximarem pouco antes do último adeus, a reconciliação de amigos amados há muito separados, a cura que parecia impossível - em meio a preces e lágrimas -, e a união entre seres tão distintos para o bem de uma vida em perigo. Definitivamente, Deus esteve ali. Neste Deus, eu escolho acreditar. Não no que valida a violência, que transforma bibliotecas em clubes de tiro, que tem aversão ao conhecimento, que expulsa minorias, que condena quem ama diferente, que governa para poucos e isola outros muitos. Não. Nesse, não.
Eu vi e escolho acreditar no Deus que é porta para todas as ovelhas, que deixa 99 e vai atrás daquela única que se perdeu; naquele que é vida e vida em abundância; acredito naquele que não "cancela CPFs", mas doa a si próprio para que outros vivam; naquele que disse "Pai, perdoa-lhes; eles não sabem o que fazem" ao invés de executar sumariamente; naquele que disse "eu também não te condeno" e fez com que todos soltassem as pedras; naquele que irou-se diante da desonestidade, da falsa moralidade, do mercantilismo das coisas sagradas e da associação da fé com a riqueza e com o engrandecimento pessoal. Eu acredito naquele cuja revolução foi derrubar o velho e segregador, ensinar o novo inclusivo e amar indiscriminadamente.
Se a fé é acreditar nas coisas que não se podem ver, eu escolho ter essa fé. Naquele que diz "venham até mim os que estão exaustos e não aguentam mais, porque eu serei alívio". Eu vi, pelo rosto de muitos que não sabiam, a face de Deus.
Este artigo foi escrito por Tick Camara e publicado originalmente em Prensa.li.