Por uma humanização da deficiência
Escrevi ao longo dos anos, coisas que eu tinha realizado e coisas que consegui realizar mesmo cadeirante. A última realização que fiz foi realizar um sonho de fazer filosofia, ainda mais, estudar e ser um bacharel em filosofia. Minha deficiência física – sou cadeirante e tenho sequelas de paralisia cerebral – nunca me atrapalhou de fazer certas coisas. Ainda mais, escrever e ser um escritor que teve milhares de blogs.
Mas, de um tempo para cá – acho que alguns anos atrás – venho verificando uma crescente estereotipação das pessoas com deficiência com a imagem de “exemplos de superação”. Até mesmo, nesses dias, compartilhei um meme no meu Instagram que dizia: “Heróis com deficiência só existem em quadrinhos! Na vida real pessoas com deficiência são apenas pessoas!”, que retrata muito bem que não somos nada de extraordinário.
Onde isso deve ter começado e de onde isso saiu? Questões culturais ou questões linguísticas que começaram a nos colocar em um patamar elevado?
1 – Uma questão cultural
É sabido que milhares de anos que o ser humano foi nômade – coletor e caçador – e muitas crianças com deficiência (ou não) e idosos eram deixadas no meio do caminho para não atrasar o clã que tinha que migrar de um território ao outro. Segundo o livro Epopeia Ignorada de Otto Marques da Silva – esgotado só tendo cópias em PDF – de 1987 (muitas pesquisas mudaram), pesquisadores nos mostram que crianças e pessoas com doenças limitantes, como reumatismo, eram deixadas no meio do caminho.
Há fontes que diziam que crianças que nascessem com alguma deformidade ou deficiência, poderiam ser mortas na Grécia antiga. Mas, ao que parece, são lendas e pesquisadores já descartam essa possibilidade, já que onde se descartavam crianças mortas – sim, existiam em algumas regiões poços que se descartavam corpos – não se encontraram nenhuma ossada com deformidade – o canal do Slow no YouTube mostra que só uma foi encontrada. Mostrando que não era bem assim.
Porém, há a marginalidade ao longo de milênios colocando a deficiência ou como castigo de alguma falta ou de demônios. Ou colocando como pessoas que tinham certo poder – ou sensibilidade – para ser, uma espécie de ponte entre aqui e o mundo espiritual. Várias culturas colocavam pessoas cegas como sacerdotes ou videntes, além, claro, de ter algumas lendas sobre pessoas que eram diferentes como “monstros” ou demônios.
Assim como na Grécia e em Roma, na Idade Média pessoas deformadas ou com deficiência eram abandonadas para morrer, sendo, em muitos casos, adotadas por pessoas e colocadas para pedir esmolas. Com a cristianização e a caridade, muitos nobres davam moedas a essas pessoas como cargo de consciência. Como acontecia em outras regiões em tempos antigos.
Fora que na mitologia grega e em outras mitologias, havia deuses e seres mágicos que eram nitidamente deformados. Como Hefesto – o deus coxo grego da metalúrgica – que se apaixona por Atenas e constrói sua coruja mecânica da sabedoria (símbolo da filosofia). Aqui no Brasil, temos na nossa mitologia o Saci Pererê – um garoto “traquina” negro com uma perna só – e a figura do Sucupira, que seria uma versão dos duendes europeus com o pé virado para trás.
Os hebreus não deixavam as pessoas com deformidade irem até o altar adorar Deus, mas, Jesus quebra isso curando as deficiências, segundo o novo testamento.
2 – Uma questão de linguagem
Como chamar uma pessoa com deficiência? Já nos chamaram de “deformados”, de “aleijados”, “deficientes” e agora, pessoas com deficiência. Com o aparecimento da Convenção dos direitos das pessoas com deficiência da ONU (Organização das Nações Unidas), passamos a ser chamados de pessoas com deficiência. Mesmo assim, há uma discussão sobre isso que não pode ser ignorada.
Segundo o livro “O que é deficiência” de Débora Diniz, em outros países, se chama uma pessoa que apresenta alguma deficiência de deficiente. Muitas pessoas alegam que esse termo – ao longo do tempo – passou a ser usado como forma pejorativa de colocar as pessoas com deficiência na marginalidade e assim, tendo de ser retirado de alguns vocabulários.
Quem defende a “pessoa com deficiência”, argumenta que a colocação do termo “pessoa” levará a adoção de valorizar mais a pessoa do que a deficiência. Mas, será mesmo? Será que depois que certos termos foram adotados, houve um aumento de respeitar certas pautas de acessibilidade e de aceitação dessas pessoas? A meu ver, muitas pessoas podem nos chamar de “pessoas com deficiência” e ainda sim, achar que nós somos inúteis ou não somos capazes.
Por outro lado, se diz que humanizou e nos colocou como pessoas, pois, colocaram pessoa na frente de deficiência.
3 – Conclusão
A meu ver – dentro daquilo que vi e convivi – existem desafios muitos mais além de linguagens e termos. Pois, sempre vai entrar na questão – não menos importante e fundamental – numa educação escolar boa e que faça as pessoas enxergarem além das aparências. Nossa cultura, ainda, olha muito as aparências antes de conhecer as essências das pessoas e isso, sempre, vai atrapalhar na hora da aceitação.
A humanização é muito mais do que termos ou uma “suposta” representação – mesmo o porquê, tivemos atores ótimos interpretando pessoas com deficiência – e sim, a própria aceitação da deficiência dentro da realidade do dia a dia. Como disse no começo do texto, a deficiência nunca foi um empecilho para buscar o que eu quero. Ser um escritor.
Este artigo foi escrito por Amauri Nolasco Sanches Junior e publicado originalmente em Prensa.li.