Pratos vazios não mentem: fome e lixo
O vídeo que circulou nas redes nos últimos dias é de destroçar cada centímetro pulsante do coração: em Fortaleza, mulheres catam apressadas restos de comida em meio à sujeira e podridão de um caminhão de lixo.
Num recorte de tempo não muito distante, outra imagem evidenciou a penúria de pessoas no Rio de Janeiro: fotos e vídeos de pessoas disputando a fila de um “caminhão de ossos” mostravam restos de carne, que seriam dados a animais, serem coletados com ânimo por aqueles que ali estavam.
Por um momento, pensei estar de volta aos anos 90, quando, adolescente, assisti na TV matéria do Jornal Nacional sobre a fome. Esta lembrança é pra mim particularmente sensível porque me recordo de contar a história de uma senhora que, para sobreviver, precisava comer “bofe de bode”. Isso me deixou desolado.
Escreveria, um dia, Carolina Maria de Jesus, em sua obra Quarto de Despejo:
“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora [...] quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças”
A fome é uma constante na vida de uma parcela considerável de brasileiros e brasileiras há tempos, mas seu espectro retornou com crueldade redobrada em meio à pandemia.
O que explicaria cenas como estas?
OS DADOS NÃO MENTEM
Alimentação é um direito dos brasileiros. E isso está presente na Constituição desde 2010, no artigo 6º. Porém, o que as pesquisas nos mostram está longe da letra fria da lei.
A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) publicou resultados de suas análises que permeiam um recorte entre 2018 e 2020. O que temos é um aumento no número de pessoas em situação de fome em nosso país: de 10,3 milhões fomos para 19 milhões no ano passado.
Essa triste realidade também atinge, de modo desigual, o mundo rural e o urbano. A mesma pesquisa da Penssan aponta que 12% dos domicílios na área rural sofreram com insegurança alimentar, enquanto 8,5% correspondem àqueles da zona urbana.
E quando, além de tudo, a água está em falta, estes mesmos níveis aumentam brutalmente, atingindo mais de 44% dos domicílios em zona rural.
Durante a pandemia, inclusive, 13,6% dos brasileiros, acima dos 18 anos de idade, passaram pelo menos um dia sem comer. Este é um dado levantado pelo projeto Food for Justice – Power, Politics and Food Inequality in a Bieconomy, da Universidade Livre de Berlim. Em um trabalho em conjunto com pesquisadores da Universidade de Brasília e da Universidade Federal de Minas Gerais, este dado faz referência a um período entre agosto e outubro de 2020.
Em dados gerais, a Food For Justice levanta um número assustador: no Brasil, enfrentam alguma forma de insegurança alimentar o equivalente a 125 milhões de pessoas!
Em sua maioria, são famílias lideradas por mulheres, de cor preta ou parda, baixa escolaridade e com rendimento em torno de R$500 mensais (tanto a pesquisa da Penssan quanto da Food for Justice convergem neste ponto).
O DESASTRE VEM DE ANTES
É uma unanimidade entre os pesquisadores sociais brasileiros: este quadro de penúria não começou na pandemia. A covid-19 e seus desdobramentos, obviamente, potencializaram o caos, mas existe uma série de outros fatores que impulsionam este problema:
O desmonte das políticas públicas de transferência de renda é um deles. O Bolsa Família, programa que atende a um número considerável de brasileiros com renda familiar de até R$178 está defasado, sem reajustes que poderiam ampliar e garantir segurança de um número maior de pessoas.
O novo Auxílio Brasil (que sequer saiu do papel) não dá mostras de ser um substituto à altura.
A péssima gestão da pandemia está inclusa como um fator também. O atraso na aquisição de vacinas, os constantes gestos negacionistas e os ataques às medidas de distanciamento e proteção individual proporcionaram, além do caos social e político, um efeito retardante na retomada econômica no Brasil (que pode ficar muito atrás do resto do mundo).
A isso somam-se a destruição do SUS e a reforma trabalhista (um remédio amargo que nunca deu resultados).
O QUE EXPLICA?
Há uma profunda crise moral e ética nesta terra. Isso existe há tempos, mas ganhou contornos macabros dentro da pandemia. Enquanto o lixo é revirado por pessoas famintas, os bares lotados simbolizam um mundo à parte, alheio às dores das ruas.
Acho que nada explica isso, se “explicar” estiver se referindo a “justificar”. Mas, explicando como um professor aos seus alunos, a fome só pode ser entendida por quem a sente. Um prato vazio é capaz de mudar o rumo da vida (e morte severina) de alguém.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.