Precisamos falar sobre Drag Race España!
Uma das maiores e mais lucrativas franquias relacionadas ao universo LGBTQIA+ na indústria do entretenimento, Drag Race tem dominado o mundo nos últimos anos. A competição de drag queens comandada por RuPaul estreou em 2009 e hoje já conta com inúmeras versões internacionais.
Com tantas pelo mundo, é normal que algumas não ganhem muita notoriedade ou então virem assunto pela qualidade duvidosa. Mas ainda há as que se destacam positivamente.
Quando as versões internacionais não são em inglês, porém, encontram algumas barreiras a mais. Além de não terem legendas de qualidade pelo WOW+ (que aliás são horrorosas!), a falta de conhecimento do público em geral a respeito da cultura drag de cada país e a ausência de Ru e Michelle também causam um certo afastamento.
Além disso, há uma questão relacionada especificamente às versões internacionais comandadas por RuPaul: às vezes nem a própria Mama Ru nem Michelle Visage entendem as referências locais.
É muito chato, e às vezes até irritante, ver as duas dando pitaco sobre referências que elas claramente não sacaram, por isso eu sempre fico mais interessado quando surge uma edição internacional com uma bancada de jurados completamente nova.
É o caso de Drag Race España.
Adeus definitivo a RuPaul
Comandada pela drag queen Supremme DeLuxe, a versão espanhola chegou em maio deste ano e segue quase a mesma linha de outras com jurados próprios, só que aqui não temos nenhuma participação de RuPaul. E isso, por si só, já é um alívio para o formato.
Essa versão tem uma estrutura parecida com a canadense e a holandesa, que também não contam com RuPaul na bancada, mas nelas a autonomia de quem está à frente do programa ainda é ofuscada.
Isso porque, mesmo que nessas edições os rostos da bancada sejam diferentes, sempre há uma aparição de RuPaul aqui e ali, mostrando que quem manda em tudo ainda é ela.
Supremme tem a liberdade que poucos apresentadores de versões internacionais de Drag Race têm: a de dar seu próprio toque ao programa.
Com direito ao bordão já icônico “buena suerte y no la caguéis” e à frase de encerramento que cita a música A Quien Le Importa no lugar do conhecido “if you can’t love yourself”, ela é a Mother da vez, com uma personalidade extremamente cativante e acessível que se assemelha aos anos iniciais do programa principal, bem diferente da frieza atual de RuPaul.
Ao lado da drag queen, a estilista Ana Locking se encarrega de opinar sobre os looks das queens, e os Javis — Javier Ambrossi e Javier Calvo, uma dupla de atores-diretores-roteiristas bastante conhecidos na Espanha — são responsáveis por avaliar o desempenho delas em desafios de atuação.
E parece que eles aprenderam com os erros de outras adaptações.
Algo bastante desconfortável de assistir em Canada’s Drag Race 1 é o ar de desdém dos jurados para com as participantes. Parece que é proposital, para soar mais shady. Não entenderam que quem deve ter essa atitude são as participantes, não eles.
Felizmente isso não acontece aqui. No lugar, vemos críticas num tom bem mais construtivo e focado em ver evolução no desempenho das drags.
Mas, claro, ainda estamos falando de Drag Race. É muito difícil encontrar uma produção perfeita nesse sentido, e nenhum jurado está livre de críticas, mas, comparado aos outros, esse time está de parabéns.
A Espanha em foco
E não são só os jurados que são dignos de palmas, os desafios de Drag Race España também merecem elogios.
A cada semana vemos o empenho da produção para que cada coisa faça sentido. O foco está em dar relevância a aspectos da cultura pop do país, e tudo é muito bem pensado para que ninguém esteja ali falando bobagem.
Para ilustrar este tópico, destaco quatro momentos que definem bem o motivo do meu contentamento.
O primeiro momento foi a runway com o tema Mis Raíces, em que cada participante teve que apresentar um look inspirado no lugar de onde elas vem.
O segundo foi o episódio inspirado em La Veneno, um ícone LGBTQIA+ da Espanha cuja biografia foi transformada em minissérie (muito boa, por sinal) pelos próprios Javis.
O terceiro foi o desafio de atuação em que as participantes encenaram uma paródia de Fisica o Quimica, novela teen espanhola que foi sucesso no final dos anos 2000 e também contou com os Javis no elenco.
E o quarto momento marcante dessa lista foi a runway que teve como tema La Noche de Las 1000 Rosalías, em que as participantes desfilaram com uma montação inspirada em Rosalía.
Este último inclusive foi um dos episódios mais emocionantes da temporada, e o melhor de tudo é que as coisas aconteceram sem forçação de barra, diferente das situações desgastadas e superproduzidas da versão original. RuPaul sonha com um momento desse.
Elenco forte
Sabemos que os jurados estão em sua melhor forma, e os desafios foram muito bem planejados, mas para falar do sucesso de Drag Race España, não podemos esquecer as verdadeiras estrelas do programa, responsáveis por servir o entretenimento sagrado: as drag queens.
É necessário destacar como a seleção de participantes é impecável, não poderiam ter escolhido um grupo melhor para a temporada de estreia.
Das mais próximas ao que pode ser chamado de vilã às que foram embora no início, todas são extremamente carismáticas e conseguem deixar sua marca de algum modo.
Elas garantem entretenimento na Werk Room (aqui chamada de Taller) a todo momento, desafiam as regras da competição e não dão descanso para a produção. Elas deixam claro por que merecem seu lugar na temporada e mostram que não se enquadram em um estereótipo. Chef’s kiss!
Você precisa assistir Drag Race España
Mesmo com tudo isso a seu favor, a prima espanhola de RuPaul’s Drag Race ainda sofre com as barreiras culturais e linguísticas. Mas sigo afirmando: vale muito a pena tentar superá-las.
O spin-off é um respiro em meio a tantas versões internacionais enlatadas que insistem no equívoco de manter RuPaul no comando, ainda que de longe.
Drag Race España está prestes a acabar, mas ainda dá tempo de assistir antes que Supremme declare a grande vencedora. Ela ainda não decidiu quem é la mejor drag queen, mas a temporada já pode ser coroada como a mais bem sucedida da franquia atualmente.
Imagem de capa - Os jurados de Drag Race España: Javier Ambrossi, Ana Locking, Supremme DeLuxe e Javier Calvo. Créditos: WOW+/Divulgação
Este artigo foi escrito por Victor Neves e publicado originalmente em Prensa.li.