Promising Young Woman: um grito contra a cultura do estupro
A palavra “estupro” não é dita uma única vez em “Promising Young Woman”.
Logo na abertura do longa-metragem somos bombardeados com justificativas masculinas para seu modus operandi. Afinal de contas, são as mulheres que "se colocam em perigo”, elas estão “pedindo por isso” e qualquer um pode “tirar vantagem”.
Conclui-se, seguindo essa linha de raciocínio, que o abuso é uma consequência de escolhas ruins da mulher, por que ela melhor do que ninguém deveria saber o que acontece quando não “age apropriadamente”.
Não são necessárias palavras específicas para entender o que está acontecendo. Todos podemos ver através do cenário e situações criados o tipo de cultura tóxica que cerca as personagens femininas no filme.
A atriz e cineasta Emerald Fennel escreve e dirige a produção, seu primeiro longa-metragem. Ela foi produtora executiva da segunda temporada de "Killing Eve" da BBC America, pelo qual foi indicada a dois Emmys e, mais recentemente, interpretou a jovem Camilla Parker Bowles em "The Crown", da Netflix. “Promising Young Woman” também conta com Margot Robbie na produção.
No longa, a atriz britânica Carey Mulligan, conhecida por papéis em “Never Let Me Go”, “Shame”, “Drive” e “Far From the Madding”, interpreta Cassandra (Cassie) uma mulher de 30 anos que abandonou a faculdade de medicina, trabalha como barista, ainda mora com seus pais, não tem ambições profissionais, nem namorado ou qualquer outro interesse padrão.
Cena em que Cassie se prepara para relevar a verdade: ela não será mais uma vítima - Imagem de reprodução.
Na verdade, Cassie passa suas noites frequentando bares e boates, fingindo estar completamente embriagada. Ela permite que homens se aproximem dela em seu falso estado frágil, permite ser levada até suas casas, onde os escuta e vê em cada movimento o avanço para o ato final.
Em uma das primeiras cenas desse tipo de interação, podemos ver na diferença entre o copo cheio de Cassie e o quase vazio do homem, quais as reais intenções do mesmo. Assim que Cassie põe um fim a sua encenação e o questiona, este é tomado pelo medo, nervosismo, nunca constrangimento, ele sabia muiton bem o que estava fazendo.
“Achei que tivéssemos uma conexão”, “Eu sou um cara legal” são as desculpas que Cassie geralmente escuta. Ela os coloca contra a parede, questionando o porquê de ela estar sóbria ser um problema.
Cada conquista fica registrada em um pequeno caderno escondido sob sua cama de infância e na manhã seguinte começa todo o processo novamente.
Caderno onde a protagonista Cassie anota todos os seus encontros - Imagem de reprodução.
A estranha existência de Cassie, o modo como encara a vida e sua incapacidade de seguir em frente resulta da perda de sua melhor amiga Nina Fisher, que morreu por suicídio (outra palavra que nunca é usada explicitamente para descrever sua morte) após ter sido estuprada publicamente em uma festa, quando ela e Cassie estavam juntas na faculdade de medicina.
Diferente de outros filmes do gênero “Rape and revenge”, Cassie não é uma vítima direta da situação. Ela não foi violada, mas Nina. Ainda assim, os pensamentos e circunstâncias sociais que reverberam ao longo do filme atacam-na como mulher.
Cassie é apresentada como uma protagonista totalmente desenvolvida que passa por uma espécie de “jornada de herói”, mas ela não possui as caraterísticas que os espectadores geralmente associam a esse tipo de personagem.
Entre tantos “ele-disse-ela-disse", que sempre são consequência de um caso de assédio a mulheres, a corda sempre arrebenta no lado mais fraco. A própria Nina nunca conseguiu justiça. Ela era apenas uma garota que bebeu demais, acabou estuprada e se matou. Já seu abusador teve um futuro bem diferente, tornando-se um membro importante e respeitável da sua comunidade.
O modo como Fennell desenvolve a história mostra que a culpa não se limita ao estuprador de Nina. Ela é uma culpa onipresente e compartilhada por quase todos os personagens masculinos do filme (com exceção do pai da protagonista).
Fennell faz referência ao seu primeiro curta-metragem “Careful How You Go”, a partir do um livro que Cassie lê na cafeteria. A obra fala sobre mulheres malévolas - Imagem de reprodução
Fennell faz escolhas inteligentes em “Promising Young Woman”, já que o abuso sexual não é mostrado, como em outras produções. Logo, ausência de cenas de exposição dá maior potência aos diálogos, oferecendo um cenário mais autêntico e realista. Não precisamos ver o estupro de Nina para compreender como isso afetou Cassie.
O longa dispara uma mensagem persuasiva, buscando abrir os olhos de sua audiência para a visão ainda presente na sociedade, envolvendo as acusações de abuso e a infeliz capacidade de homens em escapar impunes dos abusos cometidos, muito em parte pela conformidade de todos ao redor.
A trilha sonora destaca e intensifica todos os sentimentos de Cassie no decorrer da história. As músicas proporcionam ondas de diferentes emoções pelas quais ela está passando. Ora as canções são alegres, típicas do gênero pop, ora são muito profundas e sombrias, fazendo alusão ao desejo de retaliação e absolvição de Cassie.
Cassandra se vê diante do estuprador de Nina - Imagem de reprodução
Na cena inicial, as batidas de “Boys” de Charli XCX servem para dar destaque à ignorância masculina diante de seu comportamento questionável. Já "Stars Are Blind", de Paris Hilton, dá abertura para um dos poucos momentos do filme em que vemos lampejos de esperança para Cassie.
Em sua busca incansável para vingar Nina e impedir que outras tenham o mesmo fim, ela encontra Ryan (Bo Burnham), um ex-colega de classe com quem ela se reconecta no café. Apesar de como a tragédia da amiga descarrilou sua vida, será possível confiar em um homem e amá-lo?
Temos nesta parte da história uma Cassie se reconectando consigo mesma, com aquela sua parte escondida desde a morte de Nina. É no auge de sua felicidade, ao som de Paris Hilton, que Cassie e Ryan protagonizam uma cena cheia de amor e clichês nos corredores de uma farmácia.
Cena descontraída entre Cassandra e Ryan, pouco antes de história da mesma ter outra reviravolta - Imagem de Reprodução
Apesar dessa parte inesquecível, com muita química e regada à "Stars Are Blind", o clímax do filme, o derradeiro destino de Cassie na sua jornada em “Promising Young Woman”, fica nas mãos do arranjo de Anthony Willis, da música icônica "Toxic" de Britney Spears. A música dá vida ao aguardado e surpreendente embate entre Cassie e o estuprador de Nina.
“Promising Young Woman” usa de seu humor ácido para tocar em feridas que a sociedade ainda teima em esconder. O cenário criado por Emerald Fennell e o designer de produção Michael Perry ganha forma e cores mais profundas ao mostrar que machismo e a cultura do estupro ganham apoio lugares onde menos poderia e deveria se proliferar, no caso, as próprias mulheres e as grandes instituições.
No longa-metragem vemos isso a partir da falta de sororidade de uma ex-colega de Cassie e na maneira como a diretora da universidade descredibiliza as graves denúncias e evidências presentes – algo semelhante ao presenciado no filme “The Assistant”, no qual a vítima é desencorajada a lutar por justiça, encontrando-se em um estado de completo desamparo e vendo os culpados perpetuando seus atos, sempre impunes.
Cassie e Nina eram melhores amigas de infância e compartilhavam pingentes como símbolo dessa forte ligação - Imagem de reprodução
Emerald Fennell não criou uma heroína propriamente dita com Cassie. Os que assistiram a trama sabem disso. Mas Cassie acredita na justiça, e por mais que deseje uma punição a todos os envolvidos, direta ou indiretamente, no abuso da amiga, ainda assim consegue ver esperança e perdoar Jordan Green, o advogado que intimidou Nina a desistir das acusações.
Nada do que Cassandra tivesse planejado para ele seria uma punição maior do que a autoimposta pelo mesmo.
No decorrer de "Promising Young Woman" Fennell nos oferece uma jornada fascinante e imprevisível que subverte o subgênero de vingança (de abuso), abordando a mentalidade tendenciosa e a conformidade diante de situações delicadas, situações capazes de tirar tudo de mulheres jovens e promissoras como Nina e Cassie.
A história destas duas mulheres é apenas uma singela gota no oceano. Vivemos em uma sociedade onde cada ação feminina é julgada, onde nossas escolhas de roupas e um simples batom vermelho são condenados, onde sempre tentam silenciar nossa voz. É essa a sociedade exposta em “Promising Young Woman”.
Seria muito lindo pensar no roteiro de Fennell como apenas fruto de seu imaginário, distante da realidade, mas nós bem sabemos que enquanto houver pessoas agarradas à segurança da conformidade, indispostas a mudanças, muitas mulheres irão se identificar com a história Nina.
Este artigo foi escrito por Luana Brigo e publicado originalmente em Prensa.li.