Quando a IA viola as regras do jogo?
Cannes 2025 expõe os limites éticos da criatividade publicitária e acende alerta sobre o uso de IA em campanhas corporativas
Na mesma edição em que o Brasil foi eleito “País Mais Criativo do Ano”, uma denúncia anônima virou o jogo em Cannes.
O alvo: a campanha “Efficient Way to Pay”, criada pela DM9 para a Consul, que havia conquistado o Grand Prix na categoria Creative Data.
O problema: o case usou inteligência artificial para manipular trechos de um TED Talk e de uma matéria da CNN Brasil — e, segundo denúncias, talvez nunca tenha sequer sido realizado.
O resultado foi rápido e inédito: o festival cassou o prêmio, anunciou novas diretrizes para o uso de IA em inscrições e retirou outros trabalhos sob suspeita. A agência reconheceu “falhas graves” e anunciou a criação de um comitê de ética em IA. O estrago, no entanto, já estava feito.
Na Prensa Tech de hoje, analisamos a crise ética que abalou o Cannes Lions 2025. O episódio expôs fragilidades estruturais do setor publicitário, escancarou os riscos da desinformação corporativa e levantou uma questão urgente:
Até onde a indústria está disposta a ir para parecer criativa — mesmo que à custa da própria credibilidade?
A IA só escancarou o que já existia
O uso de inteligência artificial para alterar conteúdos reais e criar uma campanha premiada não representa exatamente uma ruptura: representa um novo estágio de uma prática antiga. A criação de cases fantasmas — campanhas que são veiculadas apenas de forma simbólica para garantir elegibilidade em festivais — há décadas alimenta a engrenagem dos prêmios. O que a IA fez foi tornar mais fácil, rápido e barato o que antes era feito com esforço artesanal. A adulteração de dados e fontes jornalísticas, agora gerada por poucos cliques, amplia a escala do problema.
Mais do que gerar uma peça publicitária, a IA generativa permitiu montar um universo narrativo que parecia real. Mas era falso. E esse é o ponto: quando a linha entre ficção criativa e mentira factual é apagada, o que se quebra não é apenas uma regra do Cannes, mas um pacto de confiança com a sociedade e com o próprio mercado.
Prêmios são ativos — e isso molda o comportamento
Os festivais como Cannes Lions deixaram há muito tempo de ser apenas celebrações da criatividade. Tornaram-se, na prática, instrumentos de valorização comercial. Um Leão pode impulsionar carreiras, destravar bônus, justificar fees e atrair investimentos. É uma moeda simbólica com impacto real. E isso muda o jogo: se o prêmio se transforma em ativo, as regras do jogo passam a ser testadas por quem deseja vencer — não importa como.
Agências constroem departamentos focados exclusivamente em premiações. Executivos são remunerados com base em troféus. Grandes holdings publicitárias usam o desempenho em festivais como argumento de venda para conquistar clientes. Não é coincidência que a DM9 tenha agido como agiu — é consequência de um modelo que recompensa o brilho, não o bastidor. Quando os incentivos estão distorcidos, a ética se torna opcional.
IA, desinformação e a erosão da confiança
A IA entra nessa equação como multiplicadora de poder. Se antes era necessário montar produções caras para encenar impacto, agora basta um vídeo bem editado com vozes sintéticas, dados fabricados e falas de autoridades distorcidas. É aí que a discussão deixa de ser apenas sobre publicidade e passa a ser sobre desinformação.
Quando uma peça criativa edita um TED Talk de uma senadora dos EUA e insere trechos manipulados de uma matéria da CNN Brasil, a campanha cruza a fronteira da liberdade criativa e adentra o território da fraude informacional. O mesmo sistema que permite gerar insights e otimizar resultados pode — se usado de forma irresponsável — corroer os pilares de credibilidade da indústria criativa e, por extensão, do mercado corporativo que depende dela para construir narrativas de marca.
O futuro dos prêmios (e da própria IA) depende de transparência
A resposta do Cannes Lions, com a cassação de prêmios e novas diretrizes para o uso de IA, é um sinal de que a regulação — mesmo que tardia — será necessária. Ferramentas de detecção de conteúdo manipulado, exigência de declaração de uso de IA e auditorias mais rigorosas são apenas o começo.
A questão de fundo, no entanto, não é técnica. É ética. É sobre responsabilidade. É sobre reconhecer que a IA pode ser uma aliada da criatividade — mas apenas se estiver a serviço da verdade, e não da ficção conveniente. O mercado publicitário precisa decidir se vai usar a IA para evoluir ou para simular evolução. O corporativo, por sua vez, precisa entender que premiar campanhas falsas pode ter impacto real na confiança dos consumidores. A criatividade continua sendo um dos ativos mais valiosos da indústria. Mas se for baseada na mentira, vira um risco.
Essa foi a sua Prensa Tech de hoje! Até a próxima! 😎🧑💻