Quando Erasmo Carlos se Livrou da Jovem Guarda
Ao contrário de seu famoso parceiro de composições, a transição de Erasmo Carlos da Jovem Guarda para o mundo adulto da música não foi fácil. Perdido, tentando se encontrar musicalmente e com portas sendo fechadas - inclusive as de sua gravadora - não restou opção a Erasmo senão gravar um dos melhores álbuns de sua prolífica e interessante carreira.
A Jovem Guarda foi uma onda musical de grande popularidade no Brasil e no resto do mundo, onde era chamado de Iê-Iê-iê. Aqui, demos um apelido muito mais legal para este antepassado do Rock N' Roll, mas como em outras partes do mundo, o fenômeno musical juvenil não teve vida longa.
Apresentado por Roberto e Erasmo Carlos e Wanderléa, o programa de TV Jovem Guarda exibido entre os anos de 1965 e 1968 ainda resistiria mais seis meses após o duro golpe da saída de Roberto, que se desligava para construir uma nova etapa de sua carreira.
Desde 1967 o cantor mais popular da juventude já ensaiava caminhos diferentes cantando MPB no Festival da Record daquele ano e depois sendo premiado no famoso Festival de Sanremo na Itália em primeiro lugar em 1968.
No ano do decreto do AI-5, os rockzinhos ingênuos e baladas românticas já não tinham o mesmo apelo junto a um público que não era mais inocente. O próprio país perdera a inocência em meio a um dos cenários políticos mais tenebrosos de nossa história.
Os integrantes mais proeminentes da Jovem Guarda e congêneres como Wanderléa, Jerry Adriani, Eduardo Araújo, Ronnie Von ainda conseguiram se manter em evidência fazendo outras coisas em termos de música. O próprio Erasmo, que continuou uma parceria de sucesso como compositor com Roberto, conseguia emplacar uma música ou outra nas paradas. Mas as coisas não estavam fáceis.
Em meio à ascensão da MPB de protesto, do Tropicalismo e da Soul Music que começava a desembarcar no país com Tim Maia, o Tremendão estava deslocado naquele cenário. Por anos seguidos Erasmo, que foi o maior vendedor de discos da pequena gravadora RGE, cantando coisas como "Pode Vir Quente Que Eu Estou Fervendo", via a vigência de seu contrato terminar sem muitas perspectivas no horizonte.
Conhecido por ser um grande boa-praça do meio musical, Erasmo passou então a absorver influências e devolvê-las de acordo com o seu tino como compositor. Se aproximou de Elis Regina, de Jorge Ben, que havia sido seu amigo de infância no bairro da Tijuca no Rio, bem como de seu outro grande amigo Tim Maia que retornava ao Brasil depois de 5 anos morando nos EUA.
Foi bem recebido entre os Tropicalistas, que vez ou outra bebiam da fonte da Jovem Guarda fazendo releituras interessantes, Erasmo chegou a compor para Gal Costa em seu primeiro disco solo. O resultado dessa maturação criativa veio com "Sentado à Beira do Caminho" em 1969, lançado inicialmente num compacto duplo com bastante sucesso.
Ainda desfazendo as amarras da Jovem Guarda, com acordes simplistas e até o órgão Hammond do lendário Lafayette, soando intermitente na melodia triste, a música parecia apontar o próprio momento artístico de Erasmo. Não só o título remetia à uma situação dúbia de solidão e desamparo, dúvida.
Não apenas o "Eu lírico" da canção, mas o artista em busca de um lugar para ir. O peso e a maturidade daquela música puseram um novo Erasmo de volta às paradas, fazendo com que se sentisse mais livre para investir em outras coisas do seu álbum.
Em 1970 "Erasmo Carlos e os Tremendões” vê a luz do dia como um disco maduro e ricamente trabalhado nos preciosos arranjos do maestro Chiquinho de Moraes. Atento ao seu tempo, Erasmo constrói seu disco de acordo com o que acontece musicalmente na aurora da década de 1970.
Este é o ano em que Tim Maia lança seu primeiro álbum e tanto Erasmo quanto Roberto estão malucos também pela Soul Music. Ouve-se muitos naipes de metais e arranjos de quarteto de cordas, bem como baixos e guitarras encorpados por todo disco, como na faixa "Estou Dez Anos Atrasado".
"Gloriosa" lembra um samba soul, gênero bem disseminado pela dupla Marcos e Paulo César Valle, com uma deliciosa "metaleira" entremeada por precisos arranjos de corda e os vocais em reverb, um velho charme das gravações nos anos 70.
"Saudosismo” de Caetano Veloso é uma bossa nova cuja única voz está na gravação ao vivo do raro compacto do show dos Tropicalistas na Boate Sucata que motivou sua prisão e de Gil em 1968.
Aqui, o arranjo e interpretação de Erasmo soam muito superiores que a gravada pelo seu autor e a canção não deixa de ter uma influência tropicalista no desfecho. "Coqueiro Verde", a música mais popular do disco, é uma homenagem à primeira mulher de Erasmo, Narinha.
Um balanço delicioso malemolente ( e levemente machista ) que fala de irreverência citando Leila Diniz e sua icônica entrevista ao Pasquim. O petardo remete ao samba rock de Jorge Ben ( Jor ) e Trio Mocotó a banda seminal que acompanhou Jorge por muitos anos, de tão boa,a música se tornou parte do repertório do trio formado por João Parahyba, Fritz e Nereu.
Com tantas tendências que faziam parte da música pop nacional daquele período, samba, soul, balanço, psicodelia e até MPB. Erasmo criou um disco maduro como desejava. Teve razoáveis resultados nas paradas, mas muito mais que isso chamou a atenção para a sua reinvenção como músico e artista a ponto de ser contratado pela Polygram, a gravadora que na época, tinha o maior e melhor elenco de estrelas da música brasileira, cujo esquema era muito mais qualidade do que vendagem.
Erasmo se sentiu em casa para ser um artista inventivo, sem o peso de ter de fazer hits anuais como seu parceiro que hoje vive preso a eles numa carreira que tornou-se uma caricatura de si mesmo. Erasmo encontrou enfim seu caminho, seguindo uma trilha repleta de frescor, juventude e comunicação com o que acontece na música e seus contextos. Até hoje.
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.