Quando quiseram calar o Lollapalooza
Emicida mostra camiseta de Criolo com um título de eleitor e a palavra 'vote' durante show de encerramento do Lollapalooza — Foto: Fábio Tito/g1
O Lollapalooza existe desde 1991, fruto de uma turnê de despedida de Perry Farrel, vocalista da banda de rock alternativo Jane's Addiction. De lá pra cá, o festival que congrega diversos estilos passou por transformações, até o formato que hoje agita os corações dos fãs da boa música.
A edição deste ano, em São Paulo, manteve a tradição dos festivais passados com uma pitada ardente de política e revolta.
Começando por Pabllo Vittar e indo até Marcelo D2, as canções foram entremeadas de manifestos contra o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (PL). A cantora Pabllo chegou a cantar e dançar segurando uma toalha com a imagem do ex-presidente e atual candidato presidencial Lula (PT), sob aplausos e delírio da plateia.
O barulho incomodou o Palácio do Planalto, cujo ocupante achou por bem solicitar a CENSURA do Lolla, via Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O ministro Raul Araújo classificou a manifestação dos artistas (as cantoras Pabllo e Marina foram a base da decisão judicial) como propaganda eleitoral antecipada. A multa para novos protestos no festival foi fixada em R$50 mil.
Vamos descascar essa batata para compreender o caso.
Cantora Pabllo Vittar ergueu toalha com rosto de Lula ao encerrar show no Lollapalooza, nesta sexta (25), em São Paulo (Reprodução: Brasild e Fato/Twitter)
O ministro Raul
Em 1980, nos estúdios CBS, o roqueiro baiano Raul Seixas gravaria uma de suas músicas mais controversas, o Rock das Aranhas. Com um conteúdo que hoje sabemos ser misógino e preconceituoso, Raulzito provocava a moral tradicional ao falar sobre uma briga de aranhas, como uma metáfora da relação homoafetiva entre duas mulheres.
A censura da Ditadura Militar (1964-1985), obviamente, caiu em cima e proibiu a veiculação da canção em rádios e na TV, liberando apenas a gravação nos discos.
O interessante dessa história é que Raul imaginava que outra música seria censurada: Mosca na sopa. Com uma letra crítica aos militares, a canção fala sobre vigilância a todo momento, com a “mosca” observando todos os passos das pessoas.
O Departamento de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal chegou até mesmo a embargar a música, liberando sua veiculação com uma ressalva: que a palavra “vim” fosse substituída por “vir”. Azevedo Netto, chefe do órgão que assinou a ordem, esclareceu que o autor usava o verbo de forma errada, segundo a gramática.
E foi isso. Sequer notaram a crítica social.
Enfim, toda censura é burra.
Passadas décadas deste evento, nos encontramos novamente com Raul, só que esse não canta nem usa barba (e muito menos tem o talento do roqueiro baiano).
O ministro Raul Araújo, autor da decisão judicial sobre a censura do Lolla, é o mesmo que, dias antes, havia negado representação do PT (Partido dos Trabalhadores) que pedia a retirada de outdoors em defesa do presidente Jair Bolsonaro (PL) no Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Bahia.
Na ocasião, dia 23 de março, o ministro diria que “a representação por propaganda irregular não tem essa finalidade perseguida pelo autor”. Ou seja, os outdoors que descaradamente faziam propaganda eleitoreira de Bolsonaro, na concepção do ministro Raul, não tinham essa finalidade (!).
Um dos outdoors dizia “em2022vote22”, em referência ao número eleitoral de Bolsonaro, o 22 do PL (Partido Liberal). Outro mostrava “2022bolsonaropresidente”, que segundo o PT mostra apoio à candidatura.
Se isso não é propaganda eleitoral, eu sinceramente não sei o que é.
Outdoor pró-Bolsonaro em Chapadão do Sul (Imagem/reprodução: Correio do Estado).
Dois pesos e duas medidas
Enquanto assopra para Bolsonaro e seu partido, fazendo vistas grossas sobre o caso dos outdoors, Raul morde os músicos no Lollapalooza por espontaneamente expor sua opinião política no palco do festival.
O ministro determinou, em sua decisão, a “proibição legal, vedando a realização ou manifestação de propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido político por parte dos músicos e grupos musicas que se apresentem no festival, sob pena de multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por ato de descumprimento”.
E aí entramos em um terreno perigoso: quem é proibido de fazer campanha ou pedir votos em período pré-eleitoral? A lei menciona a ilegalidade, mas não explicita quem pode ou não pode pedir votos.
E mais: a decisão do ministro veda manifestações de pessoas alheias ao mundo político ou às campanhas. São artistas, músicos, compositores, que têm liberdade (como eu e você) de manifestar descontentamento diante do governo atual.
Ou há algum tipo de crime de opinião?
O que sabemos, até o momento, é que esse imbróglio jurídico não chegou ao seu fim. O presidente do TSE, o ministro Edson Fachin, já avisou que vai levar imediatamente o caso ao plenário do tribunal.
Isso é quase protocolar, uma vez que decisões monocráticas de ministros são levadas a plenário para serem mantidas ou revogadas. Mas a atitude de Fachin pode servir como um alerta. O histórico do TSE é de defesa da liberdade de expressão. Logo, é possível que a canção do ministro Raul não encontre parceiros musicais entre os seus pares.
E uma última coisa, antes de passar para o próximo tópico: quando eu disse que a censura é burra, é porque ela é realmente muito burra. Ao redigir o ofício em que pedia ao TSE a censura do festival, os advogados do Partido Liberal, do qual Bolsonaro é filiado, colocaram o CNPJ de outras empresas, e não do Lollapalooza.
Resultado: a oficial de justiça foi bater no escritório comercial de outro estabelecimento. Só depois é que notaram que os dados tinham sido colocados erroneamente.
E o Lolla não se calou
Telão da banda Fresno durante o show (Imagem/reprodução: O Fuxico)
Com ou sem proibição, o fato é que em todos os dias o Lolla cantou, vibrou e mandou um recado ao presidente.
Marcelo D2, presente no encerramento do festival, levantou coro e fez protestos contra o atual presidente.
"Eles falaram que a gente não pode fazer campanha, mas a gente pode homenagear o festival. Ole, ole, ola, Lula, Lula", disse D2, fazendo uma analogia entre os nomes “Lula” e “Lolla”.
ais adiante, ele diria também: "Hoje, ele não. Ele não vai fazer a narrativa. Isso aqui é sobre amor, é sobre Taylor Hawkins (baterista do Foo Fighters, falecido no dia 25/02). A gente vai fazer narrativa e falar de amor, porque é isso que vai salvar a gente".
O “ele não” é uma menção ao atual presidente do Brasil.
Antes do rapper, a banda Fresno já havia feito protesto durante o seu show, projetando no telão a frase “Fora Bolsonaro”, algo que também foi gritado ao microfone pelo vocalista Lucas Silveira.
Logo em seguida, foi a vez de Lulu Santos, convidado especial da banda gaúcha, fazer seu protesto, dezendo: “Como disse a Carmen Lúcia, cala boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”
No sábado, 27, no Palco Buddweiser, Emicida já tinha mandado a letra contra a decisão do TSE e contra o presidente. “Boa noite, Lulapalooza” foi como ele saudou a plateia, incentivando os jovens entre 16 e 18 anos a tirar o título de eleitor. Ao final do discurso inicial, o rapper mandou um “Bolsonaro, vai tomar no …”
Imediatamente após a decisão do TSE, diversos artistas usaram o Twitter para protestar contra a censura. Anitta, Fernando Badauí, Jhonny Hooker e Daniela Mercury, por exemplo, soltaram o verbo contra os ataques à liberdade de expressão no festival.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.