Quanta cidade cabe na sua cidade?
Morro da Viúva, em Botafogo, Rio de Janeiro. Foto: Eduardo Sengés.
Nas últimas semanas têm corrido os noticiários do Rio de Janeiro repercussões sobre o Plano Urbanístico da cidade de Niterói. O Ministério Público questionou as audiências públicas organizadas pela prefeitura, alegando pouco espaço para participação popular.
O executivo municipal aproveita a pandemia, e o modelo híbrido, para não divulgar e minar a participação dos dissensos nas audiências online.
O projeto, aparentemente, diminuiu as Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social)* e liberou construções no Parque Natural Municipal de Niterói. A discussão encampa um problema que atravessa o país estruturalmente.
É cada vez mais latente nas cidades a tensão entre a floresta e o concreto. A preocupação ambiental ainda engatinha – no quesito mobilização e pressão sobre os entes públicos – mas vem pedindo espaço e, se não acelerar já, pode não ser mais suficiente.
A cidade do Rio de Janeiro também discutirá esse ano o plano diretor, que valerá pela próxima década.
O plano diretor é um dos atributos do Estatuto da Cidade - laureado na constituição de 1988 mas regulamentado apenas em 2001. A ideia do Estatuto é: garantir que todo cidadão tem direito às oportunidades da vida urbana, elaborar diretrizes para políticas urbanas e zelar pelo interesse público no espaço.
Do Estatuto segue o plano diretor, cuja construção depende de audiências públicas e debates com a população e as associações comunitárias. É obrigação do poder público divulgar e publicitar essas reuniões, bem como garantir acesso de todo cidadão interessado a qualquer dos documentos.
Do plano saem estudos de impactos hidrológicos e geológicos, a partir da ação humana, e planejamento da dinâmica do transporte urbano, por exemplo.
É função do plano produzir um diagnóstico da ocupação do espaço pela sociedade; deve levar em conta questões ambientais e sociais. Deve projetar como se dará a expansão da malha urbana, quais os riscos incutidos, qual o zoneamento das atividades econômicas e demais problemáticas que possam surgir.
Como, por exemplo, déficit habitacional.
Subindo a serra
Da região metropolitana do Estado, podemos saltar direto à serrana, que há um mês chocou o Brasil com mais uma tragédia em Petrópolis. A cidade vizinha, Teresópolis, passa por revisão do plano diretor e encontra os mesmos problemas de Niterói com relação à participação popular.
Entidades recorrem ao Ministério Público contra o atropelamento do projeto. Há um caso emblemático da área de uma antiga fábrica de tecidos (Sudamtex) que viraria um parque público com a nova sede da prefeitura – a antiga se transformaria em museu.
A transformação dessa ideia inicial em um bairro infestado de prédios acalorou os debates na cidade. Demonstram bem que setores tem demandas privilegiadas na soma dos interesses públicos e privados.
Esse instrumento social parece ainda mais pertinente para essas cidades, tão acidentadas de morros e encostas.
Nesse caso, o georreferenciamento e o estudo topográfico são fundamentais para evitar ocupação de encostas com mais de 45 graus de inclinação.
Mas o plano diretor é só um plano. De nada serve sem arcabouço jurídico, fundos direcionados a financiar atuação direta nas demandas e sem mobilização para o seu cumprimento.
O raio especulativo nos planos diretores das cidades do Brasil não cai em céu azul. Segue o padrão do novo código florestal, do projeto de lei que libera garimpo em terras indígenas e demais boiadas nossas de cada dia.
Está em disputa - aberta - como será nossa convivência em sociedade de agora em diante. Estamos constantemente precificando a devastação ambiental e suas consequências.
Precificamos uma extinção em massa de formas de vida – a nossa inclusa – em nome do crescimento, ou seja lá do que for.
A questão ambiental não se restringe à Amazônia. Atravessa todos os municípios e seres humanos. Disputar que cidade queremos é uma forma de disputar que país e mundo queremos.
O Brasil chorou por Petrópolis, Bahia, Minas, Tocantins e São Paulo. O Rio também teve tragédia há alguns anos e a defesa civil de Niterói garante que tem capacidade de lidar com as águas de março que vem fechando o verão.
Cada vez que colocamos um preço nos problemas de agora, assinamos também um cheque em branco para quanto pagaremos mais tarde. Um dia os cheques acabam.
*ZEIS são áreas destinadas a assentamentos habitacionais para populações de baixa renda. Prevê regularização fundiária e recuperação ambiental de áreas degradadas.
Este artigo foi escrito por Matheus Dias e publicado originalmente em Prensa.li.