Quem precisa de super-heróis
Nosso artigo de hoje tem um pé no entretenimento, outro em saúde mental e outro (esse artigo é meio estranho e é um trípode) nas páginas policiais. Enfim, quase sem pé nem cabeça. Explicamos a seguir:
Imagine você, belo e faceiro, meliante regulamentado, beneficiando-se do produto de sua árdua jornada de trabalho, enquanto perambula pela noite da pacata San Diego, Califórnia.
Não mais que de repente, surge em sua frente um sujeito mascarado. Trajando uma armadura exótica, apresenta-se como Mr. Xtreme, e antes que você possa se apresentar de modo gentil e educado, começa a moer-lhe na porrada, aplicando um corretivo que o fará desistir de sua promissora vida do usufruto do alheio.
A cena descrita parece uma singela cena de histórias em quadrinhos ou filmes de super-heróis, mas não. Isso aconteceu – e acontece – com uma certa frequência nas ruas daquela cidade dos Estados Unidos.
Enquanto isso, na Sala de Justiça…
Nosso amigo Mr. Xtreme não é um caso isolado. Vigilantes mascarados agindo como super-heróis na vida real tampouco são uma exclusividade daquelas paragens californianas. Pelo contrário, o fenômeno ocorre há anos em grandes, médias e pequenas cidades do mundo.
A lista é longa. Atlanta tem seus cidadãos menos favorecidos protegidos pelo Crimson Fist; Londres tem um vigilante de collant portando um esmeril, o Angle Grinder Man (que só trabalha aos finais de semana); Brisbane tem o Capitão Austrália (uma cópia em tons verdes do Capitão América), a Cidade do México tem o Superbarrio; Buenos Aires conta com Menganno, sempre à bordo de sua enorme moto. Orlando é a terra do Master Legend; e até mesmo Taubaté, no interior paulista, contava com um Batman local. Todos agindo à margem da lei.
Não contavam com minha astúcia!
Um legítimo Motoqueiro Fantasma já esteve em ação em cidades piauienses. Com a cabeça menos quente, é fato, mas igualmente violento. Algumas localidades fluminenses são patrulhadas pelos misteriosos Espectros Patriotas. E não, isso não é legal. Em nenhum dos sentidos da palavra.
Sociedades onde a violência urbana sai do controle, sem que o efetivo policial dê conta do recado fazendo marmanjo extrapolar seu papel de cidadão comum, vestir cueca por fora da calça e combater o crime, são sintomas inequívocos de que alguma coisa errada não está certa. Não só marmanjos: as donzelas nova iorquinas são protegidas pela Terrífica, super-heroína local sempre disposta a botar pra correr moçoilos mal-intencionados.
No dia mais claro…
A coisa é mais complicada do que parece. Muitos destes heróis foram capturados pela polícia e tiveram suas identidades reveladas, como o vigilante mascarado de Seattle, Phoenix Jones… ou melhor, o alter ego do pacato professor Bob Fodor. Mas, tal qual o Homem de Ferro, a maioria dos mascarados desmascarados volta à ação, muitas vezes formando ligas da justiça com outros colegas encapuzados. Só pra não ir muito longe, Phoenix Jones, Master Legend e Mr. Xtreme são líderes de seus próprios supergrupos.
Alguns têm perfis públicos em redes sociais, como o Facebook e o Instagram. E aqui começamos a vislumbrar o mal escondido por trás dos corações humanos, como O Sombra afirmava que sabia.
Caso de Rem (mais conhecido como o super-herói de Meriti), Eclipse, Gaúcho Negro (quem disse que Porto Alegre não tem seus vingadores?) e também os Espectros Patriotas, já citados acima. Nas postagens de alguns heróis, temos relatos sobre “corretivos” aplicados em quem pratica atos considerados reprováveis. Certos cruzados encapuzados fazem papel de promotores e juízes ao mesmo tempo.
… Na noite mais densa.
Um curioso vídeo de 2019 traz uma ronda de dois heróis, Ordem e Duque, intitulado Espectros Patriotas ensinando como se deve educar usuários de drogas, mostrando (depois de bons minutos de narração com a câmera balançando, desaconselhável para portadores de labirintite) a abordagem delicada feita a dois rapazes que faziam uso da cannabis sativa para fins recreativos numa praça carioca.
Não nos estenderemos na descrição, mas em meio de impropérios proferidos pelos super-heróis, os dois jovens atônitos passam por poucas e boas. Creio firmemente que devem ter ficado alguns dias em casa recuperando-se do diálogo.
Há centenas de discussões a levantar a partir deste ponto, passando por pedagogia, sociologia e diria ainda psiquiatria. Mas o fato principal: ninguém está correto nesta história, muito menos quem mais deveria parecer. E dá-lhe cascudão, botinada e farta distribuição de bolachas (no pior sentido).
Quem vigia os vigilantes?
Nesta educação não há espaço para diálogo, aconselhamento ou qualquer didatismo. Mas sim, uma violência gratuita e contra quem não é a maior parte do problema; o mal que precisa ser cortado pela raiz não são usuários de drogas, mas sim traficantes. Nesse ponto, os heróis acabam assemelhando-se a milicianos.
A imensa maioria dos heróis da ficção preza pela honra. Mesmo o Batman, que não costuma hesitar em dar uns tabefes em malfeitores, tem seu código de ética, ao qual se recusa a ultrapassar, ainda que em casos extremos.
Basta ler os comentários dos vídeos nas redes sociais para perceber que não falta apoio por parte do público, o que nos leva a concluir que há algo mesmo muito errado, e não só nos auto-intitulados heróis. E há outros vídeos com títulos bem sugestivos: Mais um maconheiro hostilizado ou prisão de um rato com apoio da PM.
Guerra civil
Em que momento essa profusão de super-heróis reais deixou de ser piada, algo beirando o folclórico, e se transformou num caso – perigoso – de distorção dos valores sociais?
A insuficiência do combate ao crime pelas forças legais pode nos transformar numa sociedade povoada por cidadãos fantasiados, sem preparo efetivo para a ação, e claro, sem superpoderes, querendo resolver tudo com as próprias mãos? Fica a questão no ar.
Existe uma frase famosa, a vida imita a arte. Neste caso, possivelmente com consequências desastrosas. E pelo visto, em dias tão confusos e radicais como os de hoje, esse fenômeno só tende a crescer.
Imagem de capa - Michelle Cassar / Unsplash
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Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.