Ratinho e congêneres: o cirquinho na TV ainda tem vez?
Quando eu era pequena lá em Joinville (não em Barbacena, como diria o personagem), lembro de assistir junto a minha avó trechos de um programa vespertino da Rede Tupi, nomeado “Aqui e Agora”.
Não confundamos com o programa homônimo exibido pelo SBT nos anos 1980, apesar de guardar certas semelhanças.
O show das tardes trazia toda sorte de desgraças e lamentações que atormentam a alma. Tristeza, histórias de superação e muitas, muitas lágrimas.
Isso me fez pensar em duas coisas: primeiro, o quanto a televisão brasileira mudou desde minha infância; segundo, onde a minha avó estava com a cabeça para me deixar assistir a um show de horrores daquele?
Ah, os velhos anos 1970 e 1980…
Aquele “Aqui e Agora” não durou muito, assim como a Tupi. Mas se acha que o programa terminaria ali, ledo engano; pouco tempo depois, renasceria com boa parte da equipe original no recém criado SBT, renomeado “O Povo na TV”.
Um programa que marcou época
Seu criador, Wilton Franco, era considerado um gênio da TV. Não por acaso: foi responsável, entre outras coisas, por “Essa Gente Inocente” e “Os Trapalhões”. Acima de tudo, Franco era mestre em explorar os sentimentos e a miséria humana.
No “Povo”, apresentaram-se um sem número de atrações de cunho duvidoso, como o paranormal Roberto Lemgruber, pessoas com deformidades, artistas de segunda ou terceira linha;
Pontualmente às 18h, indo ao encontro da tradição católica, havia uma lacrimosa Hora da Ave Maria, com o próprio Wilton Franco, antecipando as pregações dos pastores evangélicos que dominariam o vídeo à partir do final da década;
O programa trazia outra lenda, Jacinto Figueira Júnior, mais conhecido como “O Homem do Sapato Branco”, especialista em polêmicas e casos policiais.
Sem mencionar que “O Povo na TV” apresentou Sérgio Mallandro ao universo. Ié ié!
O programa ficou algum tempo no ar, colecionou críticas pesadas, processos judiciais e muita audiência, perdurando até o momento em que Silvio Santos passou a ter mais prejuízo que lucro.
Novas caras, mais sofrimento
Não que o “Aqui Agora” no final dos anos 1980 não explorasse as mesmas atrações, com uma roupagem mais moderna e pretensamente jornalística.
Mas o mundo mudou. Nos politicamente corretos dias de hoje, não convivemos com nada assim, não é?
Não.
Temos João Kleber. Cristina Rocha. Dudu Camargo. Datena. Marcão do Povo. Sikêra Jr.; E dá-lhe Geraldo Luís com o Balanço Geral ou com seus shows de chororô; categoria na qual se enquadram Luciano Huck e outros mais light com seus quadros assistencialistas.
No centro do picadeiro
E lógico, o maior expoente de todos, e o que melhor entendeu a essência desse tipo de programa, o Sr. Carlos Massa. Que você conhece pela alcunha de Ratinho.
Segundo o próprio, seu programa (no ar com as mesmas características há cerca de vinte e cinco anos) tem inspiração no circo de rua, do qual o apresentador é fã confesso.
Mas não é só isso. Não mesmo.
Ratinho tem atrações pitorescas; tem teste de DNA (um clássico); tem dançarinas seminuas; atrações musicais de gosto duvidoso; idolatria a políticos e empresários de caráter igualmente duvidoso; jogos populares; candidatos a cantores que se sujeitam a tomar trinta litros de água na cabeça (em troca de quinze minutos de fama ou menos);
Tudo parece caótico, mas é milimetricamente organizado. E tem, sem dúvida, uma audiência da qual o SBT não pode reclamar, tampouco prescindir.
Um programa de família
“Casos de Família”, o telebarraco que encontrou em Cristina Rocha a condutora ideal, é outro expoente do “cirquinho”.
Mesmo que você nunca tenha zapeado sem querer, eu resumo: a apresentadora e especialistas fazem a mediação de todos os tipos de desavenças familiares. De traições a divergências de gênero, passando por casos (não raros) de agressão física, vale tudo. Uma delegacia não é tão movimentada.
No ar desde 2004, o programa está entre os maiores faturamentos do canal. E se tem faturamento, podemos deduzir que por uma questão de lógica, tem público.
Menos crimes, mais freak show
Se hoje Ratinho não usa tanto o teor policialesco com o qual fez fama, abusa da polêmica misturada ao humor rasteiro. Uma vertente caudalosa por onde fluem preconceitos velados (e outros nem tanto) do público e do apresentador.
E também tem o Xaropinho.
Desfilam pelo palco, entremeando atrações, merchandisings variados de lojas populares, remédios que curam tudo, de frieira a hipertensão, planos de saúde, operadoras de televisão por assinatura, sem dúvida desembolsando polpudas quantias para aparecer nesta vitrine popular e igualmente bisonha.
Ratinho sabe o que faz. Tem talento inegável para se comunicar com seu público. Mais que falar, sabe ouvir. Evoluir. E usufrui generosamente disso.
“Me ajuda aí”
Não podemos esquecer de outra lenda: José Luís Datena, que migrou da reportagem esportiva para a editoria policial, e ali descobriu seu talento. É inegavelmente o melhor em seu estilo.
Cobra autoridades, briga com meio mundo, adora enchentes e acidentes de trânsito. E é líder de audiência e faturamento da Band. Até há pouco tempo, o maior salário daquela casa.
A cada dois anos, Datena flerta com a possibilidade de uma candidatura ao executivo, movimenta pesquisas, bagunça tendências, só para espalhafatosamente desistir em seguida. Se diverte com isso.
A televisão mudou?
Portanto, há espaço para este tipo de “cirquinho” na TV tão correta dos dias de hoje?
É claro que sim.
Jogar a culpa exclusivamente no corpo diretivo desta ou de outra emissora é uma solução simplista: há interesse por uma parte significativa da audiência, de empresários e empresas no poder aquisitivo desse público.
Mesmo que menos abonados, estes telespectadores consomem, e não é pouco. E também votam, o que torna esse tipo de programa especialmente atraente.
“A culpa é da mídia”. Será mesmo?
Não adianta, como muitos estudiosos e críticos o fazem, crucificar a TV. Não haveria espaço para este tipo de atração se não houvesse todo um círculo virtuoso (ou no caso, vicioso) fazendo a roda girar.
E não se resume apenas à televisão. Lembre que além de vídeos de gatinhos, algumas das maiores audiências em acessos no YouTube são cantores bizarros e desgraças de toda a sorte.
O problema não passa só pela mídia. Passa pela essência do ser humano.
Lembro das palavras de um jornalista da velha guarda, nos meus primeiros anos de trabalho: “menina, não esquece: jornalista é tudo urubu”. Concordo, mas acrescento: o público é formado por hienas.
Eu volto!
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.