Razão e um pouco de emoção: resenha do livro "Política é para todos"
Acredito que quando complexos e pouco compreendidos, assuntos que passam a fazer parte da conversa cotidiana tendem a ser tratados de maneira ingênua. Veja, por exemplo, a situação recente da política. Do diálogo sobre política nos últimos anos, saiu muito barulho. Em meio à confusão, no entanto, surgem certas melodias, como é o caso de Gabriela Prioli, conhecida por seus comentários didáticos e razoáveis sobre política.
Um pouco desse bom senso, Gabriela colocou em Política é para todos, onde trata os tópicos políticos mais carentes de esclarecimento.
Política é para todos vale-se da história e da constituição, além de autores renomados e exemplos plausíveis para ganhar corpo. Começa pelo esclarecimento do que é política até chegar ao que é Estado, fazendo a distinção entre Estado federativo e Estado unitário. Fala de democracia e autoritarismo, e de como a crise das instituições democráticas dá espaça ao segundo. Aborda a questão dos pesos e contra pesos da democracia, tratando também a ideia, no mínimo curiosa, de as forças armadas atuarem como poder moderador.
Há ainda um capítulo reservado aos partidos políticos e, logo em seguida, um capítulo reservado à explicação do processo de como os votos tornam uma pessoa um político eleito. Esclarece como esse processo, as eleições, é financiado, assim como o papel que o eleitor tem no processo democrático. O livro finaliza indicando e incentivando práticas de participação política para além do voto.
Mas nenhuma melodia é pura, é preciso perceber também o ruído dentro da melodia. O texto de Gabriela Prioli é a melodia, os ruídos de mais interesse serão mostrados na maioria dos parágrafos daqui em diante. Eles serão separados do texto de maneira que eu possa apresentá-los e analisá-los melhor. Naturalmente, ao extraí-los da obra, não os avaliarei sem levá-la em conta, muito embora alguns deles possam ser.
Começo com um exemplo nítido do que chamei de ruído, um objetivo do livro: “Meu desejo é que cada um forme a própria visão de mundo, e não incorpore a minha”. Talvez a frase seja só um pouco infeliz, mas a verdade é que tendo a vê-la mais como ingênua e despretensiosamente cínica.
Se a visão exposta no livro é tida como correta pelo autor, então o desejo na frase é quase improvável. Além do mais, todo texto é um discurso, neste caso político. Desconheço qualquer discurso político apartidário, ou pelo menos contra algo, sem pretensões de influenciar ou converter.
A ideia de democracia é cara à autora bem como a ideia do seu aprimoramento. Subentende-se que para ela a democracia evoluiu pela ação política das pessoas comuns reunidas em busca de um objetivo. No entanto, muitas vezes a impressão é de que a democracia evolui por outros motivos, como os interesses dos “donos do poder”, e, às vezes, grandes ações políticas de pessoas comuns, como manifestações de rua, se tornam somente curiosidades históricas.
Nesse ponto, seria possível explorar o ressentimento dos brasileiros pela política. Isso não é elaborado pela autora num livro que tenta incentivar a ação política. Era necessário. Os brasileiros sentem que em várias ocasiões suas ações não levam a qualquer mudança positiva.
Gabriele até apresenta certas ações que levam a melhorias ao estado democrático de direito, contudo os exemplos são sempre grandiosos, frutos de uma organização histórica e política, gestada em longos anos, pouco próxima à situação atual. Não quero dizer que toda ação política seja inútil, só não ache que tudo de bom sucede dela.
Há outro ponto incômodo: a visão otimista sobre burocracia. Para o brasileiro da classe média e alta pode fazer sentido ser otimista em relação à burocracia, já para o pobre dependente do Estado, não. A burocracia é sim necessária conforme os termos expostos no livro, mas a burocracia brasileira funciona mal e é usada frequentemente para fins escusos.
Quando fala do brasileiro, às vezes me parece que o livro passa a ideia de que ele, o brasileiro, é um falastrão e reclamão sem atitude política. Ao mesmo tempo, porém, o texto cita exemplos de como a ação política desses mesmos brasileiros foi capaz de, no passado, modificar o presente.
Acabo achando que a ideia aqui é de que no passado fazíamos melhor, ou já fizemos em certas ocasiões melhor, e hoje nos tornamos uma espécie de sujeito passivo munido apenas de um discurso repetitivo e ingênuo.
Algumas questões, desconfortavelmente não levantadas no texto, vêm de imediato à cabeça na sua leitura. Embora o livro seja de proposta introdutória, mesmo que não fosse desenvolver algumas questões, poderia fazê-las. Por exemplo, no capítulo sexto, sobre como os votos se tornam mandatos, na parte sobre a sub-representação de São Paulo e a sobrerrepresentação do Acre, o texto poderia questionar se há alguma vantagem prática do Acre sobre São Paulo.
Além de deixar de lado certas questões que ficam na ponta da língua, o livro às vezes parece esconder certos fatos. A título de exemplo, o fato de ter mecanismos de controle do dinheiro público investido em campanhas, não garante que o dinheiro será usado em campanhas.
O fato de que a burocracia seja útil ao processo democrático não quer dizer que ela funcione bem. Não é que a autora diga que essas coisas funcionem bem, é que ela deixa de apresentar a outra face de maneira objetiva e clara.
Parece existir um entendimento de que mais informação, mais debate e maior combate à coerção, melhor o voto, mas talvez não seja assim. De fato, o eleitor razoável, guiado pela razão, informado, aberto ao diálogo, livre, se é que é possível, não é problema para democracia. Agora, o eleitor apaixonado é uma lástima para ela.
Não é raro um apaixonado informado, aberto ao diálogo, e livre. Acontece que ele não é razoável, e não se incute razão em um apaixonado com informação, diálogo e liberdade. E, veja, o discurso apaixonado parece exercer mais influência do que o razoável e sinto que os apaixonados são maioria no poder político.
Como solução para os problemas, a autora propõe o engajamento político por um cidadão informado, aberto ao debate e livre de opressão. Mas há um grande “porém” sobre os problemas e a sua solução é simplista. Tomemos como exemplo a falta de informação. De onde ela vem? Não sei você, mas acho que essa questão nos leva aos nossos índices educacionais alarmantes.
Alguém que não recebeu uma educação de qualidade, não saberá onde encontrar boas informações, como lê-las, como analisá-las etc. Logo, por trás do problema está outro gigantesco. No fim, talvez mais engajamento político signifique mais tolos gritando pela volta da ditadura.
Somando-se a isso, muitas pessoas pensam que têm mais a fazer do que estar se engajando politicamente. Voltamos para as diferenças financeiras. Para o brasileiro pobre, maioria, talvez uma diária de serviço seja mais importante que ir a uma manifestação pública. Não que a última não seja importante, ela é importantíssima, mas na prática a primeira tem efeitos mais diretos e rápidos na vida do pobre.
E agora entramos no tema da pobreza brasileira. Há exemplos, naturalmente, de ações políticas efetivas vindas das camadas mais pobres do país, mas quem as conhece sabe a dureza de como elas são tratadas e, não raro, é preciso acontecer uma verdadeira tragédia para serem levadas a sério.
E a melodia? Havia dito que Gabriela Prioli era uma melodia que surgiu de entre a balbúrdia. Continuo pensando dessa maneira. O livro cumpre sua proposta a seu modo; em outras palavras, ajuda a preencher uma lacuna didática sobre política neste país, apesar de suas falhas.
É louvável a discordância da autora da ideia de que a política deve ser deixada aos doutos. Muito embora a ideia carregue um tom utópico, a política deve ser assunto de todos e o seu debate deve se dar com conhecimento e razão.
As estruturas básicas da política e certos temas que se entremeiam a ela são introduzidos pelo livro de modo claro e coerente. Assim o leitor iniciante no tema pode construir suas ideias de maneira mais embasada e racional. Acho lamentável as circunstância sociais e culturais brasileiras que farão com que esse texto, e tantos outros, não seja comprado e lido.
Este artigo foi escrito por Marcelo Gomes e publicado originalmente em Prensa.li.