Reality Show, o espelho social
O primeiro reality show foi ao ar em 1973. E muito antes do formato virar moda já atraiu um público considerável.
An American Family estreou na emissora PBS nos Estados Unidos, e atraiu uma gama de fãs - pelo menos 10 milhões de espectadores - para acompanharem, em 12 episódios, uma família da Califórnia resolvendo conflitos diários.
O programa estava além do seu tempo. Na época a antropóloga Margaret Mead explicou que aquilo era “uma invenção tão significativa quanto a criação do drama ou do romance”. Arrisco a dizer que ela estava certa. Os reality shows fazem sucesso até hoje por terem a fórmula secreta da representação social.
O maior reality show do Brasil é o Big Brother Brasil. O programa original foi criado na Holanda por John de Mol, transmitido pela primeira vez em 1999 na emissora Endemol. O formato do programa agradou tanto que seu criador ofereceu um pacote para outras emissoras. Não só a compra do projeto, mas também de outras variáveis, desde o melhor modelo para a casa até a posição das câmeras para a melhor vigilância.
Assim, em 2002, a emissora Rede Globo estreou o formato no Brasil, com os devidos royalties à Endemol plenamente pagos. A versão nacional do programa se tornou a mais famosa do mundo, com 21 edições cercada de sucessos e altos valores negociados entre os patrocinadores.
A inspiração para o programa surgiu através da obra de George Orwell. No clássico 1984, publicado em 1948, Orwell mostra um futuro no qual a sociedade tem sua liberdade cerceada por um governo que mantém câmeras em todas as casas do país, vigilância atribuída pelos políticos a um misterioso líder chamado simplesmente de Grande Irmão.
É dando que se recebe
Após mais de duas décadas do Reality Show no país, o projeto é uma fonte de resultados positivos para a Globo. Com a crescente presença de redes socias pelo mundo, a emissora viu os números crescerem ainda mais no ano de 2020.
Um levantamento feito pelo Twitter divulgado em dezembro mostrou que a edição de 2020 bateu todos os recordes de tweets no ano, 278 milhões de menções, superando em 10 vezes o ano anterior na plataforma.
Em audiência os resultados não ficam para trás. A final do programa registrou os maiores números desde 2010, e contou com 34 pontos de acordo com o Ibope da Grande São Paulo. O BBB também entrou no livro dos recordes como “a maior quantidade de votos do público conseguidos por um programa de televisão”, com mais de 1 bilhão e 500 milhões de votos.
Todos esses números mostram a magnitude do programa e a sua grande influência no cenário televisivo. Naturalmente, quando um programa alcança um alto número de telespectadores e produz resultados estrondosos, se torna um prato cheio para as grandes marcas que querem conquistar clientes.
Na edição de 2021, o programa teve tantas empresas buscando um espaço no patrocínio que a emissora enxergou a possibilidade de abrir mais duas cotas em relação ao ano passado; 8 empresas assumiram o patrocínio master do programa.
Para garantir um pedacinho dos intervalos, participação em provas, presença dos produtos na casa e o coração do público mais atento da televisão, as marcas desembolsaram pelo menos 78 milhões de reais, sendo assim o total das cotas ultrapassou os R$ 530 milhões.
Todas as marcas presentes sabem o impacto, tanto positivo quanto negativo, que a participação em um programa dessa magnitude pode causar à organização. De acordo com uma entrevista cedida para o jornal Metrópole, o publicitário especialista em Branding Caio Braga afirma que as empresas investem já sabendo da possibilidade de resultados nocivos.
“O prejuízo que eu vejo seria mais com relação a marca. As pessoas desenvolveram sentimentos ruins ao assistir ao Big Brother Brasil. Onde que isso pode resvalar no financeiro? A partir do momento que, quando ocorrem situações como o massacre psicológico feito com o Lucas, o público não cobra apenas ao programa, mas, também, as marcas anunciantes”, explica. As marcas que não se posicionam, na cabeça do público, estariam concordando com as situações adversas.
Caio Braga cita as marcas Avon e Amstel, que foram questionadas e tiveram que contar com trabalhos velozes de estratégia e assessoria de imprensa para virar o jogo, “As marcas tiveram que mudar seu planejamento lá dentro para ações que visavam a discussão de saúde mental. A própria Avon fez uma ação com o Lucas Penteado quando ele saiu. Já a Amstel fez uma lá dentro sobre empatia e respeito às diferenças”.
Os embates podem chegar a atingir financeiramente as marcas, mas o impacto seria mínimo. Associar-se indiretamente com negatividade é ruim, mas ter o nome da marca aparecendo na tela, na roupa, nos produtos que os participantes usam tem um peso muito maior.
A cultura do cancelamento na “terra de ninguém”
Não é segredo que as redes sociais proporcionam discussões que rodam o mundo todo em questão de segundos, uma parcela dos usuários da internet levanta apontamentos necessários que colocam em pauta movimentos de desconstrução, costumes e atitudes desagradáveis como racismo, machismo, combate a piadas contra o público LGTBQI+, entre outros.
Porém, como toda discussão essencial, encontramos alguns pontos que podem comprometer todos os movimentos. O Dicionário Macquarie elegeu o termo “Cultura do Cancelamento” como o termo do ano em 2019.
Mas afinal, o que é a cultura do cancelamento? O cancelamento tem como prática excluir o indivíduo do círculo social, das relações pessoais e não permitir que a pessoa siga sua vida sem uma punição.
De modo simples, a cultura do cancelamento se aplica para aquela pessoa que fez ou disse algo errado que não é tolerado no mundo de hoje.
O cancelamento tem como prática excluir o indivíduo do círculo social, das relações pessoais e não permitir que a pessoa siga sua vida sem uma punição.
De acordo com a cientista social, Lia Urbini, o termo tem conexões antigas, “O que está sendo popularizado hoje com esse termo, “cultura do cancelamento”, tem conexões com outros tipos de ações sociais, como o boicote e o linchamento. Ainda que cada ação tenha a sua especificidade, acho importante relacioná-las”, ela relata.
Relações existem, mas Urbini frisa que as raízes da “cultura do cancelamento” são anteriores à internet, porém esta se consolidou como algo distinto justamente por ter esse diferencial tecnológico.
A cultura do cancelamento passou a ser adotada pela maior parte dos usuários das redes sociais, entretanto, o movimento passou a agir de forma desenfreada e se perdeu do objetivo central.
O propósito era procurar por justiça e a desconstrução de estruturas nocivas na sociedade. Porém, passou a ser uma turba de gente à procura do próximo gatilho de raiva, julgando tudo e a todos contra uma perfeição inalcançável.
No caso desta edição do programa, as atitudes condenadas pelos telespectadores acabaram custando caro. Em especial porque, ao invés de uma turma de anônimos, os selecionados para participar já tinham sua cota de fama.
Neste ano, a rapper Karol Conká sentiu na pele os resultados do cancelamento. Sua participação no BBB foi repleta de acusações de xenofobia, intolerância religiosa, assédio e violência psicológica. A cantora perdeu seguidores, contratos e patrocínios.
Neste caso, o cancelamento é de certa forma justificável. Atitudes repugnantes não podem e nem devem gerar outro tipo de resposta. Porém, quando se fala em “perder a mão”, o assunto é o limite entre provocar marcas e patrocinadores para romperem contratos, organizar a perda de seguidores e valores financeiros vindos desses meios- uma forma justa de protesto moral - e diferenciá-los do linchamento digital que se apoia na cultura de cancelar para ofender, propagar ódio, atingir os familiares, ameaças de morte e exaustão psicológica.
Os protestos de intimidação atingiram níveis tão irreais que a rede globo organizou um plano para receber e proteger a rapper após a eliminação para evitar que as ameaças contra a vida da cantora fossem concretizadas. Além disso, os familiares se pronunciaram na internet pedindo para que os usuários interrompessem o linchamento contra eles.
Existe ainda outra linha tênue rondando o movimento: qual o limite para se cancelar uma pessoa “para sempre” ou praticar o processo de acolhimento e desconstrução?
Lia Urbini comenta que todo fenômeno social tem uma explicação que vai além de uma pontuação. “Sempre precisamos mobilizar um conjunto de fatores pra tentar entendê-los. O psicanalista Christian Dunker tem escrito bastante sobre o tema, mencionando a dificuldade de convivência com o diferente, a centralidade da construção dos ícones da mídia, a sensação de impunidade que o espaço de internet proporciona, a velocidade e pouco aprofundamento das interações virtuais, que não permitem grandes reflexões e apelam diretamente aos sentimentos de julgamento”.
Um reality show é um prato cheio para os telespectadores que se sentam à frente da TV para julgar, apoiar, questionar pensamentos e posicionamentos como se fossem imune aos erros cometidos pelas pessoas vigiadas – ressalto que o cancelamento é e pode ser socialmente útil como forma de protesto em diversas situações, mas não o linchamento – o efeito coletivo da cultura esquece um ponto muito importante, todos estão suscetíveis a erros.
Vale também lembrar que a internet não é uma terra de ninguém. Desde 2015 o país conta com amparo legal para a caracterização e prevenção a qualquer modalidade de bullying, apoiada pela Lei 13.185.
O texto define o cyberbullying como: Todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.
Uma sociedade reduzida em meio à pandemia e reflexos psicológicos
Num passado distante, sem a pandemia do novo corona vírus, as relações interpessoais estavam presentes no dia a dia das pessoas, no trabalho, no happy hour, encontro com os amigos e passeios pela cidade.
Essas relações são a base do que torna o ser humano uma pessoa real. Em situações de desconforto entre você e outra pessoa, normalmente você se afasta, questiona, conversa ou simplesmente abre mão daquela relação.
Com mais de 1 ano de isolamento social, as boas relações se tornaram quase inexistentes. De acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria, a demanda por atendimento psicológico e psiquiátrico aumentou 82% em consultórios particulares, e nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de SP passou de 24 mil em setembro de 2019 para 52 mil em outubro de 2020.
Imagine passar 1 ano sem manter contato físico com outras pessoas e, após aceitar um convite para participar de um reality show, ser forçado a conviver durante 3 meses com pessoas desconhecidas, com personalidades diferentes, sem ter para onde fugir em momentos de tensão. Isso é o Big Brother Brasil 21.
O programa força seus participantes a debater sobre questões do dia a dia, como amizades, inveja, conflitos, amor, ciúmes, competição. Lia explica que o reality show resume e representa elementos do mundo real.
“A competitividade e a lógica da eliminação em situações de miséria de debates, a manipulação de informações, a falsa sensação de poder que o voto nessa estrutura apresenta, por exemplo, são fenômenos bastante presentes no nosso cotidiano”, finaliza a cientista social.
Os participantes são testados semanalmente em provas e eliminações, com discussões sem meio de fuga, humilhação e vergonha com os “monstros da semana”, alimentação restrita e festas regadas a álcool.
É fácil perceber que o programa é um reflexo da sociedade. Mas as propostas do BBB21 levam essas relações a níveis extremos do contato pessoal. No mundo real, se você comete algum erro ou está descontente com uma pessoa, dificilmente você irá se manter perto dela. Mais difícil ainda é você ser julgado pelo país todo por conta de uma atitude errada A amplificação das situações cotidianas consegue somente criar o caos.
O sofrimento é a arma do negócio
Já dizia George Orwell no próprio 1984: Poder é infligir dor e humilhação. Poder é estraçalhar a mente humana e depois juntar outra vez os pedaços, dando-lhes a forma que você quiser.
A frase impactante espelha perfeitamente o resultado desses programas. Os participantes entram com medo de se mostrarem e serem julgados por suas atitudes e personalidades, e, quando se abrem para o jogo diante de várias câmeras e telespectadores, entregam na mão do público a aprovação social em troca de dinheiro e um pouco mais de fama.
Os reality shows projetam no público a oportunidade de afligir e julgar o outro sem risco de contradições. Afinal, o participante entrou ali para ser observado, não é mesmo?
Esse elemento de sofrimento é a grande justificativa para o sucesso do programa. De acordo com Lia, o livro Rituais de sofrimento, da professora Silvia Viana, explora este aspecto com muitos detalhes.
A cientista ainda comenta que o tema sofrimento é amplo, “Eu associaria a ideia de sofrimento ao tema mais amplo da servidão voluntária. Sabemos que tem gente sofrendo naquele jogo; estamos, como trabalhadores, sofrendo situações semelhantes em muitas ocasiões sem a atenção, o glamour e a possibilidade de prêmio no final; e em nosso tempo livre “escolhemos” ver o sofrimento do programa”.
A identificação inconsciente do público com os participantes é a receita de sucesso para o programa. Os reflexos sociais estão presentes na casa e, se olharmos bem, podemos ver cada movimento social que se propaga aqui fora lá dentro.
Por termos a liberdade de eliminar e escolher quem fica, a sensação de poder é tão grande que nos impede de perceber como tudo o que ocorre em um programa desse porte é um espelho do que vivenciamos aqui fora.
O olhar de crítica é amplificado com as redes sociais, e é possível enxergar pontos positivos com esse formato televisivo. Mas de que adianta visualizarmos erros e condutas impróprias e punir o participante com a eliminação se o olhar crítico não se volta para nós mesmos?
Como seria se, diariamente, fossemos acompanhados por câmeras, colocados em situações semelhantes e abertos a julgamentos?
Você estaria disposto a atirar a primeira pedra por 1,5 milhões de reais?