Red: crescer é uma fera
Imagem: 2022 Disney/Pixar - All Rights Reserved
A maior parte de nós, mulheres cis, se recorda bem desse momento tão confuso e significativo, em que vivemos uma erupção de sentimentos e sensações desconhecidas. Em RED: CRESCER É UMA FERA, essas descobertas são retratadas de forma escorreita, em uma trama repleta de metáforas e muitas reflexões.
Um afago ao coração cringe
Ambientado no início dos anos 2000, o filme traz uma gama de referências que faz qualquer coração cringe bater mais acelerado. O amor das amigas pela sua boy band favorita assim como toda a parte musical, são atrativos a mais para quem já passou há tempos pela adolescência, garantindo bons momentos de nostalgia.
Direção premiada e pioneira
Domee Shi, diretora e ilustradora, chegou aos estúdios da Pixar como estagiária, aos 22 anos. Em 2019, aos 30, foi a primeira mulher a dirigir um curta da Pixar, “Bao”, ganhador do Oscar de Melhor Curta-Metragem de Animação. Agora, à frente de “Red”, ela se torna a primeira mulher a dirigir um longa da Pixar em 36 anos de existência do estúdio.
Shi retoma no longa alguns temas retratados em “Bao”. No curta, também disponível no Disney Plus, uma mãe que sofre da síndrome do ninho vazio começa a cuidar de um bolinho como se fosse seu próprio filho.
Quando o bolinho cresce e busca a sua independência, a mãe o engole, em uma assustadora metáfora para as mães que não conseguem lidar com a independência dos filhos. Esse tema está presente em “Red” com novas cores, entretanto uma nova metáfora ganha os holofotes: a puberdade e a descoberta das nossas feras interiores.
Todas nós já vivemos
Mei Lee, a protagonista da história, é uma adolescente de 13 anos moradora da Chinatown de Toronto, no Canadá. Ela vive a pressão da sobrecarga gerada pelas expectativas da sua mãe, Ming, com o seu futuro.
Além das responsabilidades inerentes a ser uma excelente aluna, Mei também se dedica aos cuidados com o templo que a família administra, um espaço voltado para adorar aos ancestrais, principalmente uma lendária ancestral cultuada por ter recebido a benção de se tornar um grande Panda Vermelho para proteger as suas filhas durante uma devastadora guerra na China.
Vivendo essa rotina de horários rígidos, o único momento em que Mei Lee consegue se divertir é quando está ao lado das suas melhores amigas, Mirian, Prya e Abbey. As quatro rendem cenas hilárias e provocam no público uma nostalgia instantânea, na hora fiquei com vontade de ligar para as minhas amigas da época da escola.
A ruptura
Tudo muda quando em uma bela manhã, Mei Lee acorda se sentindo pesada, estranha, peluda e com odores não tão agradáveis. Ela está metamorfoseada em um Panda Vermelho Gigante, de repente é como se ela não coubesse mais na sua própria casa, na sua própria vida. Sem dúvidas esse é o principal acerto de “Red”, a metáfora para a puberdade e o momento da primeira menstruação.
A condição de panda não é permanente e ao longo da sequência de cenas, Mei Lee percebe que existe a possibilidade de controlar essa transformação, pois o Grande Panda Vermelho aparece apenas em momentos de fortes emoções. Aos poucos ela aprende a conviver, se divertir e a amar esse seu novo lado.
Nossas feras
A metáfora para a puberdade é um dos grandes acertos do filme, porém não o único. O choque de gerações e o ciclo de opressão figurado pela relação entre a avó, a mãe e Mei, é uma das formas como Domee Shi deixa explícito os mecanismos criados pela nossa sociedade para sufocar nossos instintos, em vez de nos ensinar a entender e a abraçar as nossas “feras” interiores.
Ainda vivemos em uma sociedade em que mulheres que demonstram o menor sinal de “descontrole emocional” facilmente são tachadas de loucas, descontroladas, durante anos houve até mesmo uma condição psíquica atribuída ao útero, Histeria, palavra derivada do grego “histéra”(útero), e até pouco tempo atrás era uma condição “feminina”.
É reconfortante saber que a geração atual de meninas tem uma obra como “Red” para fomentar esses debates e para mostrar que há uma forma diferente de lidar com os nossos impulsos, sem que para isso seja necessário oprimir o que sentimos. Domee Shi resumiu bem a principal lição da obra: “Abrace todas as partes estranhas e confusas de si, mesmo as que somos ensinados a guardar ou esconder.” (Fonte: ABC AUDIO)
Você já perdoou a sua mãe hoje?
Não que o filme nos leve a crer que é necessário passar pano para mães tóxicas, mas um ponto muito sensível, e que destaco como um dos principais motivos para assistir ao filme, apenas e somente, se a terapia estiver em dia, é a tensão existente na relação entre Mei Lee e sua mãe, Ming.
A mãe, uma mulher rígida, contida, e que deposita na filha muitas expectativas, e na mesma proporção exagerada busca protegê-la de tudo, possui a sua própria trajetória revelada em um dos pontos mais altos e emocionantes do longa, em que a empatia entre filha e mãe se estabelece através da identificação que Mei passa a ter com as questões vividas pela então jovem Ming.
Contudo, Mei consegue estabelecer um equilíbrio: enxerga e humaniza as dificuldades que a mãe viveu, mas escolhe para si um caminho oposto, sublinhando a riqueza de reconhecermos as trajetórias das mulheres que nos cercam, sem que para isso seja necessário abandonar aquilo que nos faz diferentes.
O poder da sororidade
Se o controle que a mãe de Mei Lee tenta exercer sobre ela se mostra um antagonista, o grande aliado da protagonista é o seu grupo de melhores amigas. É com elas que Mei Lee aprende a lidar com as suas transformações e a enxergar as possibilidades do seu novo corpo. De forma simples e clara, o filme consegue ilustrar o poder da sororidade, sem as artificialidades que a vida adulta nos impõe.
As cenas do grupo de garotas me levaram a refletir sobre como somos afastadas umas das outras ao longo do nosso amadurecimento. Essa é uma linda lição oculta em Red: as alianças e o apoio entre mulheres exercem um papel poderoso na cura das nossas questões emocionais.
Este artigo foi escrito por Beatriz Rhaddour e publicado originalmente em Prensa.li.