A reflexão sobre racismo que ganhou o Oscar
Se você gosta de filmes premiados da sétima arte, assistir "Dois estranhos" é quase uma obrigação. O curta-metragem, ganhador do "Oscar" de melhor curta em Live Action parece, em um primeiro momento, querer usufruir da estratégia de repetição temporal que tanto nos prende a atenção. Quem não lembra de filmes em que o mesmo dia se repete infinitas vezes, como “Feitiço do Tempo” e “A Morte te Dá Parabéns”?
No entanto, engana-se quem acha que o filme, dos diretores Travon Free e Martin Desmond Roe, se resume a este clichê. No curta, o "conteúdo" é muito mais importante do que a forma. Trata-se da história de um jovem negro chamado Carter, que após passar a noite na casa de Perri, uma garota também negra, repete a mesma tentativa diária de voltar para casa com o intuito de cuidar de seu animal de estimação.
Mas acaba se confrontando com Merk, interpretado por Andrew Howard, um policial, branco, opressor, que o impede mortalmente.
Todas as vezes que Carter morre, o dia recomeça e ele precisa pensar em estratagemas para escapar do fatídico destino, alimentar seu cão e continuar com sua vida normalmente. Em certo momento, a situação problema parece ter uma solução para a angustiante sucessão de mortes, no momento em que protagonista e antagonista tem a oportunidade de expor seus pontos de vista sobre criminalidade e racismo.
Mesmo que tal dialogo seja construído ainda com visual que remete ao racismo — afinal o policial, ao dar carona a Carter para sua casa, o coloca-o no banco de trás da viatura, fechada por grades — ainda é possível vislumbrar um final diferente pra o jovem negro.
Mas a esperança se esvai, em uma cena mais chocante do que as dezenas de mortes anteriores. Não tão chocante pelo visual mas sim pelo conteúdo. O policial que até aquele momento ainda se travestia da falácia de “estar fazendo seu trabalho” coloca para fora todo seu ódio gratuito e racismo, matando Carter mais uma vez.
Todos os mortos em um
O personagem principal interpretado pelo Rapper Joey Bada$$, que poderia ser apenas um personagem, ultrapassa a barreira da ficção. Ele representa cada uma das mortes causada por truculência ou despreparo da polícia americana nos últimos anos. Ele é Erick Garner, ele é Walter Scott, ele é muitos outros.
Cada uma de suas mortes relembra um destes casos, mas nenhum é mais marcante ou chocante do que o “I can’t breathe” de George Floyd, grito que parou os EUA na luta pela igualdade e justiça entre as raças. Carter é o sangue de toda uma raça.
Essa representação de Carter como todos os seus pode ser comprovada em sua última morte. Enquanto o corpo do jovem está estirado no chão a câmera passa a filmar de cima e é possível vislumbrar na poça de sangue a forma do continente africano.
Dois estranhos nos choca, nos assusta, mas nos faz pensar e refletir sobre a sociedade em que vivemos e a que queremos deixar para nossos filhos e netos. Se não assistiu, assista; se já assistiu, reflita; se já refletiu, passe a colocar em pratica e a combater o racismo estrutural que permeia nossa existência, a truculência da polícia inserida no Brasil real, que, como bem dizia o escritor Ariano Suassuna, é diferente do Brasil oficial. O Brasil real é aquele periférico, esquecido e marginalizado.
O filme não é brasileiro, mas se fosse nada precisaria ser alterado, a não ser as referências. George Floyd se transformaria em Guilherme Silva Guedes, ou no garoto João Pedro de apenas 14 anos que foi assassinado dentro de casa com um tiro nas costas, ou em qualquer um dos 8 a cada 10 dos que morrem pelas mãos da polícia e são negros.
A reflexão não é uma questão local ou continental é mundial, necessária e urgente.
Imagem de capa - Divulgação
Este artigo foi escrito por Nato Ferreira e publicado originalmente em Prensa.li.