Reflexões: Há avanços tecnológicos, mas tivemos avanços morais e éticos?
Não há dúvidas que a tecnologia deu um salto evolutivo nos últimos tempos – no período de, mais ou menos, 50 anos – e que, queiramos ou não, vivemos em meio ao mundo virtual.
Muitas notícias, por exemplo, são dadas nas redes sociais antes do que em veículos dentro da mídia, o que reforça a ideia que esse tipo de informação será tendência bastante duradoura. Mas existem perguntas – não só na filosofia da tecnologia, mas, também, na própria filosofia moral – que poderíamos fazer tranquilamente dentro do mundo de hoje como:
Será que o ser humano está preparado, moralmente, para esse tipo de tecnologia? Será que avançamos eticamente tanto quanto, tecnologicamente?
Poderíamos dizer que não. Ao começar, quando vimos que, mesmo com o conhecimento, muitos seres humanos usam esse conhecimento para fazer coisas não éticas. Os crackers – aprendemos em cursos de TI que o termo não é hacker e sim cracker, que são pessoas que roubam códigos e senhas das outras - são a prova que as éticas e não-éticas dependem muito dos nossos valores dentro da educação e como lidamos dentro de uma sociedade. Porém, vamos ver que, com liberdade e conhecimento, o ser humano pode escolher o caminho a seguir. Por outro lado, muitos seguem caminhos avessos à ética e à moral vigente.
Começo das ciências
Na verdade, quando falamos em ciências, falamos em um conhecimento criterioso que tem bases sólidas dentro de evidências. Isso passa dentro da filosofia, queira ou não. Porque, antes disso, o ser humano explicava fenômenos naturais, ou o surgimento das coisas, através dos mitos; o mito não é uma mentira.
Muitas pessoas vêm dizendo que o mito é mentira, porém, filósofos e historiadores da filosofia hoje lidam com o mito como se fosse uma pré-filosofia, a grosso modo. Talvez os gregos (hellades) tenham criado os mitos para educar seus jovens sobre a cultura grega, ou por conta das necessidades de haver uma figura como exemplos de heroísmo. Os heróis da Marvel ou da DC estão aí para provar isso.
A questão vai muito além disso: a capacidade de se espantar. Talvez, Tales de Mileto (625 a.C) – diz a tradição filosófica ser o primeiro filósofo, ao olhar insetos surgirem nas poças de água ou ver corpos úmidos, tenha se espantado com a mudança.
Os chamados pré-socráticos começam a desprender do mito e prender na razão e num discurso bastante racional das realidades e dos surgimentos das coisas, mas Sócrates (470 a.C.-399 a.C.) mudou o caminho (methodós) que a filosofia deveria seguir. Se o importante, naquele momento, era descobrir o que originou tudo, Sócrates coloca o conhecimento e o bem como pilares da busca da sabedoria.
Segundo o escritor Denis Huisman, na sua obra “Sócrates”, o filósofo teve contato com as obras dos físicos (que chamamos de pré-socráticos) e não entendeu nada. Mas os únicos que tiveram contato e concordaram em partes foram Anaxágoras e seu discípulo, Arquelau de Atenas (que a tradição coloca como um mestre de Sócrates). Mas, como coloca Huisman, Sócrates quis ser o escultor de sua própria filosofia e começou a examinar a vida e a si mesmo. Um autoconhecimento que, com devidas proporções, foi seguido por seu discípulo, Platão.
Com Platão (428 – 348 A. C.) – desde Sócrates – começam as discussões morais e éticas que vão culminar em discussões mais metafísicas. O filósofo começou a averiguar – graças à sua, talvez, inconformidade dentro da condenação injusta do seu mestre – o porquê das coisas existirem. Quis unir a filosofia de Parmênides (tudo é o que é) e de Heráclito (tudo flui), dizendo que tudo era mera cópia, pois o original estava no mundo das ideias. Com isso, se abrem discussões intermináveis sobre o que seria esse mundo das ideias.
Vamos dizer, grosso modo, que o aluno de Platão da Academia, – Platão começa a tradição das universidades – Aristóteles ("384 a.C." - 322 a.C.), é o primeiro cientista como conhecemos hoje. O estagirita – como foi chamado – sempre esteve focado em muitos assuntos, mas pesquisava esses assuntos. Foi ele que disse que a ética tem a ver com a prática e não só com a teoria, que as origens têm a ver com a pesquisa. A questão do mundo das ideias do seu mestre – questão essa muito debatida, para ele, foi resolvida com a substância (ousia). Essa filosofia foi muito importante para o período medieval, quando foi difundida com a escolástica.
A ciência de hoje tem o ceticismo de Francis Bacon (1561-1626) e o racionalismo de René Descartes (1596-1650), mas não é tão simplória assim. A ciência moderna começa, na verdade, com a Renascença e a volta do pensamento antigo, quando foge do controle da igreja. Ou seja, o mundo não teria uma substância que pudesse dar a essência das coisas, pois, se Bacon disse “saber é poder” e Descartes disse “eu penso, logo existo”, a questão da realidade depende do nosso saber e tudo pode ser modificado.
A tecnologia começa com a necessidade humana de suprir suas dificuldades, sempre fazendo da vida um pouco mais fácil. Confundimos tecnologia com computadores e afins, mas, quando colocamos a questão tecnológica, também colocamos a questão da técnica. Mesmo porque, com a Renascença, surge de novo o conceito da tekiné, que vinha do grego antigo.
O sujeito da técnica
Na Renascença, começa o movimento de colocar o ser humano como sujeito e, ainda mais, o sujeito da técnica. O sujeito tem a ver com a subjetividade do ser humano diante da realidade, e em Platão e Aristóteles essa noção não existia por causa da ideia da pré-determinação do sujeito enquanto ser que habita o cosmo (a realidade).
Mas a subjetividade dentro da modernidade tem o conceito que, ao mesmo tempo, é ligado com a liberdade e está ligado dentro da igualdade. Se o ser humano, antigamente, era um ser que não teria escolhas, na modernidade, com a individualização, começou a questão da liberdade enquanto, não cidadão do cosmo, mas, do mundo.
Muitas correntes religiosas (principalmente, cristãs), tendem a chamar essa individualização, de certa forma idealizada pela ideia da Graça (de Deus) de Santo Agostinho, como forma de relativizar certas verdades que não deveriam ser relativizadas. Por outro lado, essa individualidade fez o ser humano enxergar o saber de outro modo. Daí se começa com o aprendizado da técnica que, na Grécia, era tida como uma arte, um fazer diferente dos outros.
Para Platão, a tekhné tinha a ver com a espiteme, que era o ato de transformar matéria em algo ou pelo ato de conhecer. Era algo muito importante para os filósofos antes de Platão, pois, eram elementos indissociáveis; habilidade e conhecimento não se distinguiam de nenhuma forma permanente. Ou seja, o conhecimento vinha com a habilidade.
A modernidade começa a criar o sujeito da técnica, aquele que aprende uma habilidade e coloca essa habilidade como mudança do ambiente onde estamos. Como dissemos anteriormente, há um movimento de colocar o ser humano como um ser que tem poder de mudar sua visão da realidade.
Mas que realidade? Com o fim do feudalismo e as grandes verdades, o ser humano foi em busca de outras questões, como a ciência e o melhoramento da técnica. Inevitavelmente, colocaria esses avanços no meio das guerras e a quebra de alguns princípios humanitários, que foram esquecidos e o capitalismo começa com o conceito da melhor técnica para suprir demandas.
De um lado, houve um avanço tecnológico, no outro, não houve avanços éticos e morais e, no meio, existe muito pouco a ser discutido. Diferenças sociais, diferenças humanitárias, diferenças de conduta e até judiciária. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), dizia que o ser humano teria matado Deus e teria colocado em seu lugar a ciência. Ou seja, o ser humano retirou as morais tradicionais para colocar morais que indicam o homem como vindo do nada. A técnica é muito mais importante do que o pensar, o acreditar ou o sentir.
A técnica contemporânea
Queira ou não, somos filhos do petróleo e da técnica. Mas, acima disso, somos filhos da ideia que o estudo vem com o saber. Não o saber de conter uma habilidade ou esclarecer a realidade, que colocamos como modelador de caráter, mas, o saber como modelagem da ética e da moral. Os marxistas – seguidores do filósofo Karl Marx (1818-1883) – vão dizer que se trata da ideologia capitalista, onde vão colocar a técnica acima da moral e a ética, embora o socialismo científico – implantado na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) – tenha, também, do mesmo modo, destituído a moral para se dedicar a uma espécie de tecnocracia.
Acima de tudo, o século vinte – com duas guerras cientificas e técnicas (teckné) – foi um século do niilismo e foi um século de se relativizar tudo. Nietzsche – no século dezenove – já tinha alertado quanto às quebras de paradigmas, que culminaram na quebra de certos valores, que eram pilares para o ocidente.
Hoje, o conhecimento tem que ter certas serventias e não há apoios morais. O ETHOS grego perde a questão de moldar o caráter e, hoje, o conhecimento tem que só ter habilidade. Por isso mesmo, o respeito do outro se fragmenta e só fica o saber enquanto poder, a dominação da alienação do outro.
As redes sociais mostram uma sociedade diluída dentro de narrativas socioculturais de um só viés, e colocaram em xeque o grande sonho iluminista do conhecimento como pilar de esclarecimentos e de um ser humano mais ético. O que vemos são pessoas moldando esse conhecimento para caber em suas crenças, como se o outro devesse ser moldado conforme as crenças que algumas pessoas tem. Por exemplo, defensores de animais – que defendem uma pauta inteira sobre animais – tendem a radicalizar e brigar com pessoas que defendem algo diferente daquilo. As próprias crenças sobrepõem a verdade.
Por outro lado, a questão da verdade se dissolve para cada um construí-la. Mas existe uma verdade única? Segundo a filosofia contemporânea, não, porque a filosofia contemporânea colocou a verdade como uma subjetivização de cada um.
Se, antigamente, existia uma finalidade (telos), hoje a finalidade é uma questão de técnica ou aquilo servir para alguma coisa. O saber tem certas finalidades? Será que existem finalidades que podem conotar dentro de uma outra maior? A meu ver, como Sócrates, a finalidade do saber tem o propósito de enobrecimento da alma, e tem a ver com a ética e a moral.
A verdade é aquilo que vivemos – se nos comportamos como escravos conceituais – e o exame da vida que vivemos. Se não for por um esclarecimento, por que teríamos de nos esclarecer?
Conclusão
Portanto, segundo o exame que mostramos, o ser humano melhorou a técnica, mas, não há uma melhora na ética. O filósofo Aristóteles dizia, que devemos equilibrar entre a teoria (o saber) e a prática (phronesis) onde existe entre eu e o outro. Minha liberdade não pode sobrepor a do outro, assim como respeitar o outro é importante dentro de um convívio saudável e social.
Este artigo foi escrito por Amauri Nolasco Sanches Junior e publicado originalmente em Prensa.li.