Relacionamentos em cena
Cena do filme "A noite", de 1961 - Reprodução
O cinema em seus primórdios, ao perceber-se como arte, tendeu por algum tempo a uma tentação de comportar-se como um objeto para o entretenimento, abusando dos “efeitos especiais”, a grande maioria herdados do ilusionismo.
Até durante um segundo período, onde o cinema já compreendia-se como produção autenticamente artística, ainda se caminhava pelos trilhos do fantástico, pelos engenhos da ótica e da ilusão, vide George Méliès.
Não demora muito para que se encontre espaço para uma temática mais reflexiva, perdendo um pouco do caráter fantástico, que parecia indissociável àquela arte nascente. E é justamente sobre o cinema reflexivo que trataremos no presente artigo, mais especificamente sobre o modo como o cinema aborda a questão dos relacionamentos.
Irei tomar como laboratório dois filmes, de diretores distintos, de modo a proceder com uma análise crítica, não me atendo absolutamente aos aspectos técnicos, mas particularmente as nuances psicológicas e antropológicas, no que é mais próprio dos relacionamentos conjugais.
O primeiro que gostaria de tratar, é o princípio de uma série de três filmes do diretor italiano Michelangelo Antonioni, “A aventura”, o primeiro filme de uma série que ficou conhecida como “trilogia da incomunicabilidade”.
A obra destaca-se por trazer à luz, as dificuldades que enfrentavam as classes mais abastadas, ou seja, a burguesia, no modo de relacionar-se. Já em um contexto de mudanças de costumes e preconizando crises que se acirrariam ainda mais nos anos da revolução sexual.
O filme narra a história de Sandro, interpretado por Gabrielle Ferzette que em um passeio pela costa italiana, acaba por perder misteriosamente a noiva Anna, personagem de Lea Massari, ao pararem em uma ilha. Nas poucas cenas anteriores ao sumiço da moça, já fica sugestionada tensão que envolve a relação. Os diálogos esparsos dão muito espaço ao som das ondas, ao silêncio, ou melhor, à ausência da voz, compreendida aqui como ausência da comunicação.
Após o sumiço, que parece não surtir muito efeito nos personagens, o que obviamente denota uma superficialidade enorme no modo de relacionar-se, ou ao menos uma apatia escandalizante, ele acaba por iniciar um relacionamento com a amiga da noiva desaparecida.
Entra em cena, então, Claudia, personagem de Monica Vitti, que apesar de demonstrar uma personalidade que difere em muitos aspectos de Anna, sofre com as mesmas deficiências da relação anterior. Os planos abertos que compõem a obra, dão muitas pistas do modo como se deve ler a obra.
A vastidão dos espaços é uma metáfora clara da distância que há entre os personagens. Os diálogos marcadamente artificiais, muitas das vezes enfrentam longas pausas, em que são encobertos pelo som da natureza ao redor, que parece querer deixar ainda mais evidente a superficialidade, a falta de conhecimento mútuo que há entre os amantes.
Há sempre na atmosfera uma tensão, de algo que parece que deve ser dito, mesmo que ninguém saiba o que seja. Uma predisposição natural à tensão, que é fruto de uma deficiência de autoconhecimento, que impede os enamorados de se doarem minimamente com franqueza. Franqueza que fica inviabilizada justamente porque parece não haver conhecimento da própria verdade, aqui uma verdade subjetiva, e, portanto, não há como partilhar nada de autêntico nas relações.
O filme pode ser compreendido, pelas circunstâncias históricas, principalmente por estar próximo ao tempo do neorrealismo, como uma crítica social, contudo, não parece ser o que pretende ser. É mais do que isso. É o exame pioneiro no cinema das consequências da modernidade, do niilismo enfim estabelecido no escopo da interação entre as pessoas. É ainda mais dramático por se mostrar no modo de relação mais íntima entre os homens, a relação dos amantes. É a incomunicabilidade dos que não tem o que dizer.
A segunda obra que gostaria de elencar, não se trata de um longa-metragem propriamente dito, mas de uma minissérie de cinco capítulos produzida para a televisão sueca, do diretor Ingmar Bergman, trata-se de “Cenas de um casamento”, de 1973.
A obra é interessante desde a escalação do elenco, já que a protagonista é Liv Ullmann, já àquela altura ex-mulher de Bergman, o que nos permite cogitar uma certa carga autobiográfica.
A série principia mostrando o casal Johan (Erland Josephson) e Mariane (Liv Ullmann), sendo entrevistados por uma revista como modelo de casal ideal. A partir daí começamos a ver o desastre de uma relação cansada, marcada inicialmente por uma passividade enfadada, principalmente por parte de Johan, e um empenho desmedido e tenso por parte de Mariane. A crise, que já era iminente, desencadeia-se ao presenciarem a discussão de um outro casal, que acaba por ser o gatilho que irá suscitar uma reflexão mais objetiva sobre a própria relação.
É interessante notar que há uma insegurança por parte de Mariane, no sentido da conquista da própria independência em termos sociais, como mulher, mas que é profundamente marcado por uma dependência afetiva que a torna mais submissa que qualquer mulher. A discussão ainda irá desembocar nas queixas sobre a perda do entusiasmo na vida sexual, pela falta do desejar-se, fruto de uma apatia que quase se transfigura em ódio, asco, culpabilização mútua.
A crise se aprofunda, Johan toma uma amante, as discussões ficam cada vez mais acirradas, e o casal é exposto ao espectador com um realismo, que poucas vezes foi exposto na tela. O que antes estava implícito é exposto de modo cru, impiedoso, com uma capacidade incrível de verbalização de sentimentos tão íntimos, o que certamente causa uma identificação espetacular da audiência com os personagens.
O casal acaba por divorciar-se, é a partir daí que as coisas mudam de direção. O antigo casal começa a recuperar o mútuo interesse, o ardor sexual ressurge, fruto de um erotismo selvagem, possivelmente por sentir-se livre do aparato contratual e transcendente do enlace matrimonial, parece haver instintivamente a percepção de uma genuinidade selvagem.
Ambos os filmes são retrato das viradas que sofreu a humanidade nos últimos anos, e as consequências mais concretas e íntimas que advém desses processos, ainda que trate de dramas atemporais na longa história dos amantes. Certamente ainda possuem uma atualidade incrível, imprescindível àqueles que estão na jornada do autoconhecimento.
Este artigo foi escrito por Filipe Machado e publicado originalmente em Prensa.li.