Resenha - Pelas janelas da fazenda
Título: Pelas janelas da fazenda
Autora: Ellen Bromfield Geld
Editora: Objetiva
Ano de publicação: 2010
Comecei a ler “Pelas janelas da fazenda” em 27 de janeiro de 2022 e terminei em fevereiro do mesmo ano. Foi uma leitura importante por dois motivos: o primeiro pelo fato de publicar resenhas em minha newsletter e o segundo por estar me aproximando de textos autobiográficos a fim de aprimorar minha escrita. Planejo a leitura de um livro por mês e tenho me organizado no sentido de manter esse tipo de atividade em meu trabalho.
Ellen Bromfield Geld conta no livro que veio para o Brasil com o marido, o filho mais velho e o cachorro após conselhos do amigo Carlito Aranha, brasileiro que ofereceu o primeiro trabalho ao marido dela aqui no país. Os outros dois filhos nasceram quando o casal já morava no Brasil.
O início do capítulo 1 é uma descrição de cunho autobiográfico em que a autora afirma que a escrita é o seu “centro de gravidade”:
Creio que todos nós temos um centro de gravidade. Algo que nos une à terra e dá sentido e direção às coisas que fazemos. O meu tem a ver com a escrita, e por isso depende de onde espalho meus papéis e lápis. Às vezes é no campo da varanda, em torno da qual deixei o jardim crescer livremente, para poder fitar as trepadeiras floridas, as samambaias e as enormes folhas daquele mosaico selvagem, enquanto organizo meus pensamentos. Outras vezes é em uma mesa de piquenique sob um Pinus elliotis, de onde à tarde posso ver no pasto uma vaca babá velando o sono de um grupo de bezerros, enquanto as outras vacas se espalham para pastar. Mas meu lugar preferido é onde estou sentada agora, uma escrivaninha simples de madeira diante de uma janela através da qual contemplar as árvores no gramado e a ladeira que leva às terras cultivadas me faz reviver as cenas em constante mutação- num lugar que se tornou um modo de vida (GELD, 2010, p. 11, grifos meus).
Agora, pergunto: Qual o seu centro de gravidade?
Ellen Bromfield Geld descreve em detalhes a vegetação do vale do rio Atibaia, estado de São Paulo, e o primeiro lugar onde moraram no Brasil. Descreve também a casa onde se instalou com a família. O modo como a descrição é realizada nos dá a sensação de estar no mesmo lugar que ela. Também é descrito o modo de prática da agricultura naquele tempo.
O livro é interessante não só pelas descrições feitas, mas também pelos dados históricos apresentados desde o início da narrativa. Esta é construída em parágrafos longos, talvez como estratégia para enriquecer o texto. A linguagem é sofisticada e acessível ao mesmo tempo.
A escrita de Ellen me parece carregada de subjetividade e sutileza. É dessa forma que ela relata o sentimento de busca de um verdadeiro lar enquanto ela e o marido moravam e trabalhavam em terras que ainda não pertenciam a eles:
[…] quando se trabalha na fazenda de uma empresa, sempre há o sentimento de que, apesar de você pisar na terra que acabou de arar, amanhã uma canetada num escritório longínquo com ar-condicionado pode desfazer os seus planos. Por isto, apesar de Carson planejar e renovar os campos e de plantarmos árvores e flores em torno da casa que ocupávamos, ela nunca nos pareceu um lar, era só um lugar de passagem enquanto procurávamos a terra em que sonhávamos nos estabelecer pelo resto da vida (GELD, 2010, p. 20).
Quantos de nós nos sentimos como esse casal, em busca de um lugar que seja tão nosso de tal modo que nenhum lugar anterior possa substituí-lo. Quero dizer com isso que nos sentirmos bem em um determinado espaço é uma coisa, mas nos sentir parte dele é outra. É como possuir algo sem precisar comprar. É como se ali tivéssemos existido desde sempre.
E você, já encontrou seu lugar?
Pelas memórias da autora, passam casas, ruas, cidades historicamente contextualizadas. Pessoas estão vivas nas páginas do livro por meio das descrições que não nos deixam pular páginas para chegar logo ao final. As pessoas da história nos seguram ali, vivendo junto a elas as situações e tensões experimentadas. Ao relatar cada aventura pelo interior do Brasil com o marido Carson, a autora faz afirmações, a meu ver, provocativas, no sentido de que cada um pode elaborar as próprias reflexões a respeito da vida a partir do que ela escreve. Vejamos um exemplo:
Prefiro pensar que as pessoas conduzem as suas vidas, e não o destino. Numa atmosfera repleta de acasos e circunstâncias, quando sabemos o que queremos aproveitamos as oportunidades que surgem; isso nos leva a circunstâncias que, por sua vez, nos deparam com mais acasos (GELD, 2010, p. 48, grifos meus).
Somos livres para conduzir a própria vida ou o destino tem essa tarefa especial? Se nascemos com o destino traçado, qual o sentido de nossos esforços para conquistar o que queremos? Se nascemos com o destino traçado, nossa autonomia para fazer escolhas estaria limitada?
Ellen Broomfield segue nos oferecendo pontos de vista que ajudam a compreender a necessidade constante de busca o que, de certa forma, resguarda nossas liberdades individuais de seguir por um caminho e não por outro.
O fato de ser imigrante pode ter sido crucial para a autora colonizar o território brasileiro com um olhar tão diferenciado. Ter de construir uma identidade nova para tomar posse de terras em um país diferente, após muito trabalho aqui, me parece um processo complexo e que se deu a longo prazo.
Não deixou de lado a cultura norte-americana para viver aqui, e interpretou os hábitos das pessoas das fazendas onde morou com um olhar próprio de uma estrangeira. Isso não significa que tenha sido preconceituosa. São as questões culturais que perpassam a análise de hábitos de grupos diferentes que convivem por um certo tempo. A questão não é eliminar o outro por meio da escrita, usada como mecanismo de violência, mas registrar o outro a partir de uma perspectiva particular.
A escritora relata os detalhes da compra da fazenda Pau-d’Alho e situa o lugar da casa no espaço da fazenda. Em várias passagens do livro, a casa tem um lugar especial. O processo de construção da casa da fazenda Pau-d’Alho, que levou dois anos para ficar pronta, as vivências e datas históricas são citados por Ellen no livro, bem como o processo de escrita dela. Vejamos o trecho a seguir:
[…] Detrás de um muro coberto de jasmim, eu me sentava para escrever perto de uma janela de onde via as mangueiras e os telhados e ouvia trechos da conversa do dr. Vicente […] (GELD, 2010, p. 71).
A ênfase no processo de escrita não me parece ser objetivo da autora neste livro, embora os trechos onde relata a prática da escrita sejam significativos. A leitura do livro me levou a uma das partes mais interessantes: a interseção texto-imagem. Sabe-se o quanto uma fotografia é representativa dos fatos narrados.
Pelas janelas da fazenda traz um conjunto de páginas que mostram apenas fotografias com legenda. Tudo o que li até agora foi revivido.
Observo as fotografias e penso o quanto de memória habita em cada uma delas. São pessoas, lugares, famílias e vidas que sorriem ou apenas retratam o cotidiano.
No livro, a autora publicou imagens dela, do marido, filhos e netas. Ellen mostrou também as fotos de amigos que fez ao longo de sua jornada pelo interior do Brasil até se estabelecer na fazenda Pau-d’Alho, interior do estado de São Paulo.
E você, o que cabe em suas memórias? Qual o significado das imagens que moram em suas fotografias? De que forma você se vê nas fotografias em que aparece no decorrer de sua jornada?
Tais questões levam-nos a olhar as imagens sob perspectivas diversas. A função da autora no livro não foi apenas a de catalogar pessoas, mas registrar as experiências que teve em um país diferente de onde veio. Fotografias nos mostram que qualquer coisa pode ser vista de formas diferentes do que são.
A infância dos filhos no vale do Tietê também é relatada, assim como o carnaval e os momentos das refeições, descritos com afeto e riqueza de detalhes.
No capítulo vinte e três a autora conta que o filho Michael tornou-se administrador de uma fazenda e casou-se, em 3 de julho de 1982, com Márcia, filha de imigrantes japoneses. Da união, nasceram Erin e Dustin. “Naquela primavera ele encontrara alguém que, como ele mesmo descreveu, enchia todos os seus espaços vazios” (GELD, 2010, p. 164, grifos meus).
E você, encontrou alguém que preencha todos os seus espaços vazios?
A autora escreve pequenas frases que suscitam questões provocativas, como as que fiz nesta resenha. Carson, marido de Ellen, encontrou o centro do mundo ao fazer o que amava. Também encontrei o centro do meu mundo, relatado no poema abaixo, do qual sou autora:
Estou no centro do meu mundo quando escrevo,
quando deixo ir o que não quero,
converto a letra em palavra
e a palavra em ação.
Sou peixe pequeno,
mas não morro pela boca, não.
E você, qual o centro do seu mundo?
Rosa Acassia Luizari
A escritora Ellen Bromfield Geld era filha caçula do escritor Louis Bromfield (1896-1956). Ela nasceu na França, mas cresceu nos Estados Unidos. Foi cronista de O Estado de São Paulo. Imagem disponível em: travessa.com.br. Acesso em: 27 jan. 2022.
Para saber mais sobre a autora, leiam a reportagem abaixo:
Ellen Bromfield Geld: uma vida dedicada ao bom cultivo das terras e das letras. Disponível em: . 30 de outubro de 2019. Acesso em: 27 jan. 2022.
Este artigo foi escrito por Rosa Acassia Luizari e publicado originalmente em Prensa.li.