Robomed: o cirurgião do futuro
Tenho lá minhas convicções que comentar cenas de um filme de 2005, em pleno 2022, não configure spoiler. Caso contrário, me perdoem, mas vai assim mesmo.
Lá no finalzinho de A Vingança dos Sith, terceiro episódio da nonalogia Star Wars, uma equipe médica tenta desesperadamente salvar a vida de Padmé Amidala, que acabara de dar a luz aos gêmeos Leia e Luke, enquanto sua força se esvai, com perdão do trocadilho.
Coisinha à toa mais à frente, outra equipe médica fazia das tripas coração para salvar a vida do ex-Jedi Anakin Skywalker, depois de uma discreta discordância com seu ex-professor.
Vamos dizer que a segunda equipe foi melhor sucedida, já que Anakin foi alçado ao posto de melhor vilão da ficção científica, sob a alcunha de Darth Vader. Já Padmé não participou dos próximos seis filmes, se me fiz entender.
Mas não é todo esse drama o que realmente importa. Você lembra quem eram os integrantes das equipes médicas?
Se respondeu “dróides”, certa a resposta! Se disse “robôs”, também. Obstinados e incansáveis como profissionais do SUS espacial, aquelas criaturinhas fizeram de tudo para salvar seus pacientes.
Na franquia do lado, as naves da Frota Estelar contam com experientes e dedicados hologramas médicos, como vistos nas séries Star Trek: Voyager e Star Trek: Picard. Bem humorados, diagnosticam e tratam de frieira à encefalite talosiana. A Disney também tem seu robô médico, o enorme e fofo Baymax, de Operação Big Hero.
Não faz muito tempo, fiz uma reportagem sobre os robôs sexuais por aqui, que rendeu comentários bem peculiares. Hoje, o assunto são os robôs que estão trabalhando nas salas de cirurgia, fazendo o que médicos já fazem, porém com uma precisão inimaginável para o ser humano.
Tive a oportunidade de acompanhar a operação (em dois sentidos) do impressionante Da Vinci. Se o Robocop era “o policial do futuro”, esse é “o cirurgião do futuro”. Não tem tanto apelo ao público, mas o que faz é realmente incrível.
Na ponta dos dedos
Em primeiro lugar, fique bem claro: o Da Vinci ainda não faz as cirurgias por conta ou vontade própria. Ele até certo ponto funciona como uma extensão das mãos do cirurgião humano. E que extensão! O Da Vinci remete ao visual de um polvo cibernético alienígena, com quatro braços que fazem movimentos em 360 graus. Não tem o menor jeito de humanóide. Confesso que minha primeira associação foi com aquele robô da série Perdidos no Espaço, não a clássica, mas a versão recente da Netflix.
O motivo desse tipo de robô não se parecer com um humano, tem justificativa: ser operado por um andróide seria bem mais assustador, e levantaria muito mais desconfiança do que outro que se assemelha mais a uma máquina qualquer, das várias que se encontram num centro cirúrgico.
Outro motivo, bem mais prático, é que adaptar aos “braços” do robô todo o aparato cirúrgico lhes dá mais precisão que fosse em imitações de mãos humanas. Mas as mãos estão lá: o médico comanda o robô através de um joystick. Mas não se iluda, nada parecido com seu velho Atari, e menos ainda com um moderno PS5. Eles têm o jeito daqueles dedais que sua avó usava para costurar.
E onde entram as vantagens de uma máquina dessas com um bisturi nas mãos, perdão, nos braços, perdão, nos tentáculos? Bem, o Da Vinci realiza movimentos absurdamente mais sutis e precisos que qualquer humano. A precisão de incisões, suturas e procedimentos é tão exata que as intervenções são muito menores e com menor perda de sangue e outros fluidos, que via de regra não devem sair do corpo.
Com incisões super pontuais, o conforto para o paciente é bem maior. Atualmente, os robôs vêm sendo usados sobretudo para laparoscopias em urologia, cirurgia geral, cirurgia torácica e ginecológica.
As cirurgias de próstata, aliás, são uma de suas especialidades. Somado a isso há um sistema de inteligência artificial na realização de biópsia, que segundo reportagem da tradicional revista The Lancet, especializada na área médica, tem precisão de 97% na detecção de tumores, sobretudo malignos.
O mais curioso, entretanto, é que enquanto o robô faz o trabalho “sujo”, o médico responsável fica confortavelmente sentado (ou em pé, se quiser), com a cabeça envolvida por um sistema de monitor, reproduzindo com altíssima qualidade a visão do “polvo”. Lembra um pouco aquela cabine do VAR dos estádios de futebol, sem a pressão da torcida. Com a vantagem de poder ampliar até quinze vezes. Melhor que qualquer olho humano poderia fazer.
Outra aplicação do sistema é poder trabalhar à distância. O médico não precisa necessariamente estar no mesmo ambiente do robô. Bastando uma boa conexão de Internet, não há limite físico que os separe. É a cirurgia home office. Dá para o médico trabalhar de bermudas, chinelos, na casa de praia e saboreando um espetinho de camarão. Infelizmente não há a mesma escolha para o paciente, que por força da necessidade precisa estar no mesmo ambiente do robô.
Apesar de parecer coisa de um futuro distante, desde os anos 1990 até o início desta década, as duplinhas médico-robô já fizeram quase nove milhões de cirurgias pelo mundo, sendo que 15 mil delas aqui pelos nossos lados. Nosso amigo Da Vinci começou a trabalhar por aqui em 2008, no Hospital Sírio Libanês, na capital paulista.
Há pouco mais de uma dúzia de cirurgiões humanos habilitados a controlar o robô, em território nacional. A demanda é grande, mas o custo, ou melhor, o investimento para a formação de novos profissionais, é altíssimo. A atual situação econômica e política do país não ajuda.
A maioria dos Da Vinci em território nacional está operando (literalmente) em hospitais particulares de alto padrão. Há apenas um trabalhando (heroicamente) no SUS (Sistema Único de Saúde), mais precisamente no Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro, subordinado à UERJ.
Este Da Vinci faz suas obras de arte (olha o trocadilho que eu não tinha usado até agora) desde o primeiro semestre de 2019, dentro do Programa de Cirurgia Robótica. A média de intervenções diárias ainda é pequena, para a demanda: cerca de duas por dia.
O maior inimigo deste Da Vinci “do povão”, entretanto, passa bem longe dos bandidos e monstros cibernéticos que infernizaram o Robocop: a administração estatal.
Não que haja algum plano maligno como havia na OCP da Detroit do policial do futuro, aqui a coisa é bem mais simples, mas perversa: a constante ameaça do corte de verbas para a saúde e a ciência. Não é fácil ser um Robomed para cuidar, ajudar e proteger a saúde do cidadão em território brasileiro.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.