SBT x Globo: quando a criatividade venceu
Desde que a tevê comercial surgiu nos moldes conhecidos, uma guerra surda ocorre nos bastidores. Um complexo jogo, mesclando xadrez, truco e espionagem industrial. Movimentos precisos decidem a sobrevivência de um programa, ou em casos mais graves, os destinos de uma emissora.
O jogo, travado por executivos, verdadeiros generais atrás de suas mesas, atende pelo nome Programação e Contra-programação. Mover as atrações de horário a fim de neutralizar ou prejudicar as concorrentes. Acontece todo dia.
Sem trocar olhares – no caso de haver contato visual, serão regados por sorrisos e amabilidades – os combates são travados através de planejamento e boas doses de intuição.
Hábitos e bons costumes
Como disse Boni há tempos, televisão é hábito. Enquanto comandante supremo da Globo, usou essa estratégia como ninguém. Sucesso e planejamento empresarial adequado permitiram a Globo tornar-se a Globo.
Dia e noite, as demais trabalham para fisgar parte de sua audiência, frações que significam milhares de pessoas, e milhões de reais em publicidade.
A líder tem uma imensa vantagem e uma preocupante desvantagem, insuficientemente explorada pelas demais, que têm problemas em fechar a equação tempo e dinheiro.
Vantagem: graças ao hábito, é muito difícil para qualquer concorrente cooptar seu público de maneira eficaz. Por isso, a Globo não precisa fazer alterações drásticas na programação. O cancelamento do Zig Zag Arena, ano passado, foi exceção.
Mas aqui a vantagem vira desvantagem: por ser uma estrutura operacional gigantesca, movimentando milhões de reais por dia e encabeçando uma imensa rede de afiliadas, fazer movimentos rápidos é muito oneroso, difícil e perigoso para a Globo.
O monstro de muitas cabeças
A melhor analogia vem da Marinha. Pense num grande porta-aviões, repentinamente surpreendido por um obstáculo em sua rota. O tempo de manobra é muito lento, comparado ao de uma pequena fragata.
Nos anos 1980 e 1990, quando a fatia de mercado dominado pela Globo era ainda maior, um pequeno barquinho resolveu se posicionar na rota da imensa nave de guerra.
A embarcação de pequeno porte era o novato SBT. Sua manobra de contra-programação foi original, ousada e inesperada, deixando a Globo estupefata por um bom período e abrindo um novo capítulo na história da tevê. Jogada inédita em Programação e Contra-programação, que acabou virando sua marca registrada. Uma estratégia de guerrilha.
O ano era 1985. O SBT se aproximava do quarto aniversário, sem nenhum grande sucesso além do Programa Silvio Santos, algumas novelas mexicanas e o Viva a Noite. Do outro lado a Globo, duas décadas de operação e pelo menos quinze anos na liderança; No ar um de seus maiores sucessos, a novela Roque Santeiro, campeã inconteste de audiência.
“Eu não vi, mas minha esposa viu, minhas filhas viram…”
Numa feira de conteúdos nos Estados Unidos, Silvio Santos encantou-se por uma minissérie: o dramalhão Pássaros Feridos (The Thorn Birds), inspirado no livro homônimo. Um padre (Richard Chamberlain) apaixona-se por uma garota (Rachel Ward) e isso causa um problemão familiar e eclesiástico, atravessando gerações. Também pudera, o padre queria ser Papa! Argumento de novela mexicana, bem ao gosto do público do SBT.
Mesmo com tintas carregadas, Pássaros Feridos fez sucesso estrondoso em sua exibição na ABC americana. Suficiente para Silvio Santos apostar na atração, com uma grande campanha na mídia e em toda a programação do SBT.
A minissérie seria exibida no horário coincidente com a linha de shows da TV Globo, após Roque Santeiro. O ponto alto da comemoração do quarto aniversário. E nada além disso.
Não seria, caso a Globo não cometesse uma sequência de erros que entraria para a história, parte por arrogância, parte por não enxergar além do lugar comum.
Fogo de palha
A líder, no primeiro momento, não deu bola. Minisséries, naqueles moldes, não representavam perigo. Mas a campanha de marketing do SBT era tão agressiva que alguém cogitou: Pássaros Feridos poderia roubar uns pontinhos do Ibope, e talvez até chamar atenção para aquela rede de programação de baixo custo.
Foi definida uma estratégia simples, que deixaria o SBT em maus lençóis. A Globo reforçou as chamadas do horário nobre, e programou algumas atrações especiais. Pronto. Ameaça controlada.
Ou não?
Primeiro erro: reforçar a linha de shows mostrou ao público, e principalmente às agências e anunciantes, que aquela minissérie era diferenciada. O burburinho sobre Pássaros Feridos tomou as ruas. Segundo: a Globo subestimou qualquer possibilidade de reação do SBT. E aqui a mágica aconteceu.
Quem com novela fere…
19 de agosto de 1985. Segunda-feira. Aniversário do SBT. No ar, a mexicana Cristina Bazán. Pontuação média, apanhando de Roque Santeiro.
Chegou a hora de iniciar Pássaros Feridos. Para evitar dissabores, a novela global foi esticada. Passou de seu horário de encerramento e seguiu em frente. Ninguém mudaria de canal.
O capítulo de Cristina Bazán terminou. Pássaros Feridos iria para o ar. Em instantes, estaria esquecido.
Quem deu as caras no vídeo da emissora de Sílvio Santos não foi o ator Richard Chamberlain, protagonista da minissérie, mas… A Pantera Cor-de-Rosa.
O SBT exibia o tradicional desenho animado, enquanto deslizava pela tela “estamos esperando o final do capítulo de hoje de Roque Santeiro para a iniciar a exibição de Pássaros Feridos”. E assim foi.
… com pássaros serão feridos!
Surpresa. A direção da Globo esticou a novela por meia hora. Até ser obrigada a encerrar para não colapsar a grade de programação, ou causar problemas contratuais com os anunciantes da linha de shows.
Os créditos de encerramento de Roque Santeiro entraram no ar; o SBT interrompeu o desenho no ponto que estava e libertou os Pássaros Feridos. Sucesso absoluto, liderando a audiência com dianteira de 20 pontos.
Aquartelado em casa, o homem-sorriso, rindo como nunca, acompanhava a primeira vitória da emissora num embate que se estenderia por dias. A Pantera Cor-de-Rosa tornou-se sala de espera para as aventuras do padre e da moça.
Quatro dias torturantes para o Departamento de Programação da Globo. Outro movimento no jogo era impossível, por causa de todas as obrigações publicitárias. Já para o SBT foi um momento de consagração, com índices explodindo a cada capítulo.
Dali em diante, era só o SBT conseguir uma atração de peso, e a Pantera voltava ao ar. Filmes, shows, musicais, tudo o que havia de conteúdo especial, foi precedida por algum desenho animado. Incluindo o blockbuster de Sylvester Stallone, Rambo II - A Missão.
Nessa época a emissora lançou o ousado conceito de “liderança absoluta do segundo lugar”, que ocupou por mais de duas décadas, sempre mordendo os calcanhares da líder.
Um raio cai duas vezes no mesmo lugar
Cinco anos mais tarde, a mesma Globo tentou esmagar outra concorrente, só que desta vez, o obstáculo não era uma fragata desviando apressada de um porta-aviões. Seu caminho foi barrado por uma ilha, impassível ao movimento das ondas.
Com a linha de shows diariamente alvejada pela novela Pantanal, da TV Manchete, a líder lançou mão da mesma técnica, esticando os capítulos da sua novela Rainha da Sucata. Logo o público estaria acompanhando com mais atenção as desventuras de Tancinha e esqueceria aquela bobagem de Juma, que teimava em virar onça.
A reação da Manchete foi inesperada. Em vez de segurar como o SBT, colocou no ar vídeos com o elenco da novela, expressão séria, dizendo “em respeito ao telespectador, Pantanal irá começar pontualmente às nove e dez da noite”.
O público mudava de canal na hora informada e assistia à Manchete, na vitória mais duradoura de uma concorrente sobre a Globo. Foram meses.
Não que a Globo não insistisse nessa estratégia do estica-e-puxa até o confronto final do último capítulo. Com resultado sempre desfavorável.
Infelizmente, a emissora dos Bloch não fez a lição de casa e não soube fazer o jogo da Programação e Contra-programação. O resto é história.
Os tempos são outros
Hoje em dia, essas estratégias parecem improváveis. E são. O SBT, assim como a Record TV e a Band, cresceram em estrutura. Mesmo distantes da Globo, têm dificuldades de manobra. Quatro navios tentando seguir o mesmo rumo e evitando se chocar com o vizinho.
O SBT ainda faz mudanças repentinas de grade, reflexos desta tradição. Mas raramente são bem sucedidas, e muitas vezes, desastrosas.
Não muito raro, as “quatro grandes” são atingidas por concorrentes menores, como Cultura (a Band que o diga), e mais raramente, RedeTV!. São mais coincidências e golpes de sorte que uma estratégia real de contra-programação.
O mundo, a mídia, e sobretudo a televisão, mudou. Ficaram para trás aqueles tempos de estratégicas tresloucadas, mas acertadas e sem dúvida, divertidas.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.