Se meu carro pensasse
No final dos anos 1960, os Estúdios Disney apresentaram ao mundo um tipo revolucionário de automóvel. Tomava decisões, andava sozinho, ajudava pessoas, e ganhava corridas. Não que fosse exatamente uma novidade automobilística: era um legítimo Fusca. Seu nome, Herbie. E tinha personalidade. Muita personalidade.
De lá para cá, a ficção foi tomada por vários carros autônomos. Desde KITT, a Supermáquina, com o melhor da inteligência artificial embarcada num veículo, como Christine, de John Carpenter, com o melhor da possessão demoníaca embarcada num automóvel.
A verdade é que tudo isso está deixando de ser ficção, para se tornar em médio prazo, em uma incrível realidade. Não que a gente vá ver por aí carros simpáticos como Herbie, eficazes como KITT, e se Deus permitir, tomados pelo capiroto como Christine. A verdade é que, em maior ou menor grau, praticamente todas as montadoras estão aliadas a gigantes da tecnologia, buscando transformar carros autônomos em coisas do cotidiano.
Daí você já desconfia que vou falar dos carros da Tesla, o que seria muito óbvio. Achou errado. Eles já são uma realidade parcial. E como muitas outras experiências, ainda bastante cheias de problemas. Mas meu destaque principal fica para a iniciativa da Waymo, empresa coligada ao Google (sempre eles), que mesmo enfrentando certos perrengues, tem perspectivas bastante promissoras, e não só pelo viés automobilístico. Explico.
Conhecedor das ruas
A Waymo nasceu discretamente em 2009, sob a alcunha Google Self-Driving Car Project. Ao contrário dos concorrentes, não escondia a intenção de criar um carro autônomo de verdade (o Self-Driving do título), e não um sistema assistido.
Parte da equipe que deu o pontapé inicial no projeto foi a mesma responsável pelo Google Street View, os famosos carros que carregam os olhos que tudo vêem. Afinal, ninguém entende melhor as rotas e traçados das ruas. Para esta primeira fase, nada menos que cem carros Toyota Prius foram adquiridos.
Parecia um tanto improvável que essa ideia se tornasse realidade, mas no final de março de 2012, o Google divulgou – diretamente no YouTube – seu primeiro teste totalmente funcional. Steve Mahan, deficiente visual, deu uma volta a bordo de um daqueles cem primeiros carros. Rebatizado como Pribot, o veículo levou Steve para um passeio, com direito a comprar um lanche em um drive-thru e buscar suas roupas lavadas.
Esses primeiros veículos escondiam um tanto do charme do Toyota Prius: com um sem número de geringonças instaladas em seu exterior e interior, quase lembravam o DeLorean da trilogia De Volta para o Futuro. Mas muito menos aerodinâmico. Mas cumpriam o que prometiam. Ainda assim, um funcionário do Google ia sentado ao lado do “motorista” com um notebook, para deter o carro em caso de algum bug.
Pequeno e independente
Algum tempo depois, Mahan foi convidado a testar outro brinquedinho, e esse bem mais sério: o Firefly, um veículo projetado desde o início para ser 100% autônomo. Tão independente de motorista que sequer volante no painel tinha.
Firefly: bonitinho e quase eficiente | Imagem: Waymo
À primeira vista e a uma certa distância, o pequenino Firefly lembrava um Fusca (alô, Herbie!), sem seus característicos para-lamas. Mas também parecia um Pokémon, ou coisa assim. E principalmente, moderno.
O projeto continuou evoluindo. Em 2016, com a reorganização da corporação, transformada na toda-poderosa holding Alphabet, o Self-Driving Car ganhou uma empresa para chamar de sua: a Waymo, que continuou desenvolvendo o Firefly. Mas pequenos problemas começaram a se manifestar: o carrinho se tornava instável desenvolvendo velocidades acima de 40km por hora. Batia uma “bobeira” e a tendência dele era cometer pequenos erros. Que poderiam em pouco tempo se tornar um problemão. O simpático Firefly foi aposentado em meados de 2017, e em agosto do mesmo ano alguns foram enviados a museus nos Estados Unidos.
Tecnologia em alta velocidade
A Waymo decidiu não apostar mais em veículos próprios, e fez parcerias com diversas montadoras. O foco foi direcionado mais especificamente para uma minivan, a Chrysler Pacifica. Com ela, o lançamento oficial de um serviço nomeado Waymo One, que nada mais é do que um tipo de táxi, sem que você possa conversar com o motorista. Não que o sistema seja calado, ele (ela, no caso) até fala, mas não dá (ainda) pra falar sobre o jogo do Palmeiras.
Veículo do serviço Waymo One: atento ao trânsito | Imagem: Waymo
A tecnologia embarcada deu um salto. Os carros são agora equipados com diversas câmeras, radares e também o LiDAR, sistema de detecção remota de luz refletida. O mesmo que alguns funcionários do governo brasileiro pretendem usar para detectar uma civilização perdida de 450 milhões de anos enterrada sob a Amazônia. Só que no caso do Waymo, as aplicações são reais e bem práticas.
O serviço começou a ser oferecido ainda em 2017, pouco depois da aposentadoria dos Firefly, na cidade de Phoenix, no Arizona (EUA). Em fevereiro de 2021, começaram os testes na cidade de San Francisco, na Califórnia. E já em agosto, a operação comercial do Waymo One começou. Há dezenas de vídeos no YouTube mostrando os carros inteligentes fazendo seu trabalho. O mais interessante é que não dá para dizer quem fica mais surpreso: quem está de fora, ou quem está dentro do veículo.
À primeira vista, as minivans parecem normais, descontando-se todo o hardware (já muito mais discreto) sobre o teto do carro. Mas não há como estranhar quando o veículo chega para encontrar o passageiro, estacionando cuidadosamente no meio-fio. Sem ninguém no volante.
Já à bordo, com a rota combinada com o veículo, cabe ao passageiro apertar o botão e dar início à viagem. E aí são comuns as expressões de espanto. O carro dirige cuidadosamente, freia em esquinas, espera em cruzamentos, faz pequenas ultrapassagens, tudo com precisão. Tanto quanto KITT fazia nos anos 1980. Com a vantagem que os Waymo One não saem para combater o crime por conta própria.
KITT, nos anos 1980: mais perto da realidade, com menos personalidade | Imagem: Universal
De olho em tudo
Em sua quinta geração desde que foi criado, o sistema “lê” e calcula uma variedade impressionante de fatores: outros veículos, sinalizações de solo, semáforos, pessoas (o elemento mais complicado, devido à sua imprevisibilidade), leitura térmica, luzes, alterações climáticas. Segundo a própria Waymo, até mesmo cocô de passarinho. Tudo processado por um computador instalado sob o porta-malas.
Os vários “olhos” do carro inteligente | Imagem: Waymo
As Chrysler Pacifica, primeiras a rodar com o sistema, ganharam novos colegas. A Waymo fez parcerias e está adaptando uma grande frota de veículos das montadoras Stellantis, Jaguar, Land Rover, Daimler, Volvo, Renault, Nissan, Mitsubishi e Geely. Todos já rodando pelas cidades-teste.
A Daimler, por sinal, escreve outro capítulo desta história. Seus caminhões vêm sendo adaptados pela Waymo para utilização no serviço Waymo Via. É isso que você está pensando: entrega de cargas por via rodoviária sem motorista. Caminhões imensos e autônomos, lembrando o que foi visto em algumas cenas do filme Logan.
Os caminhões do serviço Via: sem descanso | Imagem: Waymo
Assim como citei em outra reportagem, esses processos trazem certos inconvenientes, como a provável demissão em massa de motoristas. Certo, o número de acidentes motivados por cansaço ou uso de rebites e outras drogas, por caminhoneiros, diminuirá. Mas sem dúvida haverá uma crise parcial no trabalho.
Muita calma nessa hora
Um dos motivos que levou o Google/Waymo a apostar num sistema totalmente independente do motorista diz respeito à escolha que a Tesla fez para seus veículos parcialmente autônomos, com o sistema chamado Autopilot. O equipamento da empresa de Elon Musk faz seu serviço com eficiência, mas vem de fábrica com um aviso importante: deve sempre ser supervisionado por um motorista humano.
Parece óbvio, já que é um sistema de controle parcial. O problema é que nunca se deve subestimar o ser humano. Houve casos de passageiros que confiaram demais no Autopilot e acabaram se dando mal. Em agosto do ano passado, a Administração de Segurança nas Estradas dos Estados Unidos abriu uma investigação contra o Autopilot, depois de onze acidentes relatados. Sete com ocorrência de lesões e um deles culminando com a morte do ocupante do veículo.
Outras empresas também têm desenvolvido seus sistemas de dirigibilidade autônoma. Entretanto, como o ser humano não é mesmo confiável, algumas delas já se depararam com um problema: os carros foram hackeados. Conectados à Internet, os sistemas mostraram uma vulnerabilidade desagradável.
Só que aqui a Waymo, talvez por ter enfrentado o problema em alguma fase do desenvolvimento, ou por um pouco de perspicácia, andou na contramão e se deu bem. Seus carros, contrariando toda a lógica, são imunes a esse problema pois não se conectam à rede durante a operação. E é um diferencial que pode ser decisivo no sucesso da empreitada.
Fator humano
No momento, a empresa trabalha basicamente (como se fosse pouca coisa) nessa prestação de serviços de transporte de passageiros e carga… mas é certo que em breve isso deverá saltar para o mercado de veículos particulares. E aí que muitas questões entrarão em jogo. Ou na pista, se preferir.
Como os carros “enxergam” o mundo | Imagem: Waymo
Os sistemas do Google têm sido muito bem sucedidos, com um número de colisões razoavelmente pequeno, em se considerando as peripécias realizadas desde 2009. A mais séria ocorreu quando um carro (dirigido por um humano) atravessou um sinal vermelho e abalroou o carro autônomo. Ainda assim os airbags foram acionados e ninguém se feriu gravemente.
Mas há uma questão que tortura os pensamentos dos engenheiros, sociólogos, filósofos e palpiteiros, desde que o conceito e o desenvolvimento dos carros autônomos começou para valer: suponha que o carro vai dirigindo muito bem por uma rua, quando de repente outro veículo, com uma pessoa “de verdade” atravessa pela contra-mão e vem em sua direção; o hardware é mais do que preparado para fazer um desvio rápido de rota e evitar a colisão, salvando a vida do passageiro e também sua auto-preservação.
Até aí, parabéns. Mas imagine que para desviar, ele precisará subir em cima da calçada. Sobre a calçada caminha um grupo desavisado de estudantes, ou uma simpática senhorinha que foi comprar pão. E aí, o que o carro faz? Como vai decidir quem é mais importante? Como será feita essa equação?
Não precisa ser adivinho para saber que a Waymo e outras se defrontam com essa possibilidade, que felizmente não precisou ser posta a prova. Mas o cenário de “não vitória” existe.
E como disse anteriormente, temos sempre de pensar no fator humano. Conforme relatórios do Google, a principal reclamação dos usuários dos carros autônomos é que eles são “extremamente cuidadosos” e prudentes no dirigir. Não deveria ser uma regra? Acho que o público ainda prefere ver Herbie fazendo suas ultrapassagens.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.