Segurança e liberdade: um dilema nas redes
Um recente projeto do governo britânico levantou discussões sobre até que ponto a proteção de dados deve ser encarada como algo inviolável ou não. O caso tem a ver, especificamente, com o aplicativo de mensageria WhatsApp e a pornografia e abuso sexual infantil.
O projeto em questão é parte da Lei de Segurança Online do Reino Unido e visa a identificação de conteúdo veiculado no aplicativo identificado como pedofilia, como imagens e vídeos. Para tal, o dispositivo legal prevê a utilização de uma tecnologia credenciada, sob controle do governo, que fará uma varredura das mensagens privadas dos usuários, gerando notificações de conteúdo inapropriado e idetificando o emissor.
Há, em paralelo às discussões políticas em torno da lei, o desenvolvimento de ferramentas que possam proporcionar esse monitoramento, em especial baseadas no client-side scanning, tecnologia que realiza o escaneamento e a comparação com uma base de dados de conteúdo questionável.
Diversos especialistas criticam o uso deste tipo de ferramenta. Em recente artigo, Nathalia Sautchuk Patrício, pesquisadora do Centre for Global Cooperation Research da Universidade de Duisburg-Essen na Alemanha, destaca a vulnerabilidade que o client-side scanning proporciona a criminosos, aumentando a chamada "superfície de ataque" às contas dos usuários.
A proposta de lei tem um objetivo urgente e necessário, que é o combate ao abuso infantil e o compartilhamento de pornografia de menores na rede. Contudo, as entrelinhas trazem alguns problemas que giram em torno da própria segurança e liberdade na rede.
Reações de especialistas
Em 14 de abril deste ano, diversas organizações e especialistas assinaram uma carta aberta, onde expressaram suas preocupações com a proposta à Lei de Segurança Online.
Em destaque está a critica unânime às tecnologias de varredura, caracterizadas como não confiáveis e altamente suscetíveis a sinalizar conteúdos que não tenham a ver com material pornográfico infantil.
A outra questão mencionada à exaustão é a liberdade do usuário. Aplicativos como o WhatsApp utilizam a tecnologia E2EE, uma criptografia de ponta a ponta que protege com robustez as mensagens dos usuários.
Uma vez aprovado, o projeto governamental introduziria um algoritmo de varredura que iria acessar toda e qualquer mensagem presente no aplicativo instalado nos dispotivos móveis, quebrando seu sigilo. Ou seja, as mensagens deixariam de ser privadas.
A resposta oficial do Whatsapp veio. Em entrevista à BBC, Will Cathcart, diretor da empresa, avisou que o aplicativo não irá baixar sua segurança mediante exigência de nenhum governo.
"O que está sendo proposto é que nós – seja diretamente ou indiretamente, via softwares – leiamos as mensagens de todos. [...] Não acho que as pessoas queiram isso", disse o executivo.
Não só o governo britânico, mas também a União Europeia apresentou um projeto de regulamentação no uso dos aplivativos de mensagens, tendo em vista o combate à pedofilia e o abuso infantil na internet, muito similar ao apresentado no Reino Unido.
A Comissão Europeia apresentou a proposta em maio, logo sendo criticada por órgãos especializados no assunto. O Conselho Europeu de Proteção de Dados (EDPC) e a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (EDPS) expressaram preocupação em relação ao impacto que o projeto de lei poderia causar na privacidade dos usuários.
Entre a privacidade e o combate ao abuso infantil
A despeito das discussões e polêmicas, a pornografia infantil é uma terrível realidade no mundo inteiro.
De acordo com dados do Centro para Crianças Desaparecidas e Exploradas (NCMEC), dos Estados Unidos, 85 milhões de conteúdos veiculados por aplicativos na internet, entre fotos e vídeos, foram reportados como abuso infantil.
De todo esse material, 60% estava hospedado em servidores europeus. Isso acendeu o alerta dos governos do continente, que utilizaram mecanismos legais para combater o problema.
Eis que somos jogados diante de um dilema que ronda a vida nas redes: é possível ter privacidade e segurança, sem destruir uma ou outra?
No Brasil, pesquisadores da USP desenvolveram, em fevereiro deste ano, um sistema de monitoramento de mensagens que alerta sobre conteúdo relacionado à pedofilia.
O algoritmo escaneia e identifica mensagens que podem ser entendidas como assédio a menores de idade. O objetivo é que pais possam utilizar essa ferramenta com seus filhos, reforçando a proteção contra a atuação de pedófilos na rede.
Além disso, o sistema possui um banco de dados com palavras de cunho sexual e ainda tem defesas contra estratégias que os abusadores utilizam para driblar programas de monitoramento.
Obviamente, há um custo, que é a perda da privacidade.
Permanece o ponto de reflexão desse texto, seguindo os debates no mundo inteiro. Sem identificar o conteúdo pedófilo e pornográfico, como inibir a atuação de abusadores em diversos países?
Seguiremos atentos às novidades deste caso.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.