Ser direita ou esquerda no Brasil
“Esquerdista” e “direitista” foram dois conceitos muito utilizados nesta república tropical em chamas. Acusadoramente ou não, um ou outro estiveram na boca do brasileiro médio em suas casas, no trabalho, na padaria, na igreja ou no boteco da esquina.
Mas, vou ser sincero, não sei ao certo se, sob o sol latente do dia-a-dia suado do trabalhador brasileiro, as pessoas de fato sabem o que estes posicionamentos políticos, usados quase como uma alcunha depreciativa, significam.
Inclusive é perceptível, analisando os debates constantes nas mídias sociais, um esvaziamento do sentido político de esquerda e direita, por entre memes, emojis e virais.
Esse processo fica ainda mais evidente quando observamos o período a partir das eleições presidenciais de 2018. O retorno do fantasma de um comunismo, agora vitaminado com o chamado “perigo globalista” e teorias da conspiração de uma “nova ordem mundial”, contribuiu para uma interpretação rasteira destes espectros políticos.
Acredito que seu app de mensagens ou sua rede social favorita, assim como os meus, foram torpedeados por um sem número de desinformações desse tipo. Ainda estamos calculando o estrago disto sobre a opinião pública, mas, sem dúvidas, a deseducação política pode ser apontada como um dos resultados mais destacados.
Em ocasião anterior aqui na coluna, refletimos um pouco sobre o brasileiro médio e suas principais características. Hoje, convido você a matutar sobre o que é esquerda e direita e como estes conceitos estão situados no espectro político brasileiro.
Girondinos e jacobinos
Vamos começar com um mergulho na história.
De certa forma, devemos a criação destes conceitos ao que aconteceu na França, a partir de 1789. A Revolução Francesa sacudiu seu país natal e o mundo.
A liberdade guiando o povo, Eugène Delacroix, 1830.
(Imagem/reprodução: Museu do Louvre)
Os ventos que sopravam da França impulsionaram uma série de outras revoluções em países europeus e latinoamericanos, que depuseram regimes monárquicos e instituíram uma carta magna com leis, direitos e deveres dos cidadãos.
Esse processo trazia à baila a ideia de que todos, sem exceção, inclusive a cabeça coroada do país, tinham que se submeter a uma constituição. Isso derrubou o Antigo Regime absolutista e deu abertura à democracia.
Na França, a Assembleia de 21 de setembro de 1792 pode ser identificada como o ponto inicial das ideias de direita e esquerda. Reunindo 749 deputados na ocasião, os franceses buscavam discutir os rumos do país.
Os girondinos (moderados) se sentaram à direita na sala, enquanto os jacobinos (radicais) se sentaram à esquerda, e os oscilantes sentaram-se no centro. Essa escolha seria determinante para a política mundial posterior, uma vez que ela delimitou posições no espectro político que são referência até hoje.
Ambos os grupos políticos estiveram no comando da Revolução.
Os jacobinos defendiam a instituição de uma república e o fim dos privilégios das classes mais favorecidas (alto clero, nobreza e alta burguesia).
Vitoriosos inicialmente, eles criariam a Convenção, em 1793, um período marcado pelo governo de Maximilien de Robespierre. Medidas mais amplas como educação para todos e voto para todos os homens, independente de renda (o chamado sufrágio universal masculino) foram projetos defendidos pelos jacobinos.
Robespierre seria responsável pelo chamado período do Terror, com perseguições constantes e execuções na guilhotina.
Os girondinos chegariam ao poder com a queda de Robespierre, criando o Diretório. Eles buscaram conciliar os interesses nobres e da alta burguesia, restaurando muitos dos privilégios que haviam sido derrubados pelos jacobinos.
Os ventos revolucionários acabaram levando estes dois espectros políticos (moderados e radicais; conservadores e revolucionários; direita e esquerda) para demais países ao redor do mundo, em processo revolucionário ou não.
Direita e esquerda na democracia
O legado da Revolução Francesa foi o pontapé inicial para a criação da democracia contemporânea. A queda do Antigo Regime deu espaço à formulação de regimes novos, mediados por uma Constituição, onde o voto passaria a ser algo importante (sendo ampliado ao longo de décadas e séculos em todo o mundo).
Nisso, direita e esquerda passam a existir como algo necessário à saúde de uma democracia.
Norberto Bobbio, filósofo e historiador italiano, afirma que ambos os espectros possuem metas bem definidas: a direita busca a liberdade individual, partindo do ponto de que, sendo a desigualdade algo natural, apenas garantindo que todos pudessem ser livres é que poderíamos proporcionar um ambiente pleno de crescimento.
A esquerda, por sua vez, busca a igualdade social, considerando que a desigualdade é construída pela própria sociedade e deve ser combatida através de ações que possam dar oportunidades e equiparar os desiguais em suas diferenças.
Podemos tomar como critério a economia. A visão da esquerda propõe uma economia mais justa e solidária, com maior distribuição de renda, algo que promoveria as igualdades.
A direita, de outro lado, prioriza o liberalismo, doutrina que na economia pode indicar os que procuram manter a livre iniciativa de mercado, tomando as desigualdades econômicas como naturais na sociedade, defendendo a liberdade de cada um como possibilidade de crescimento.
Em cada espectro, quando se caminha para posições autoritárias de controle ou imposição de sua ideologia, chegamos aos extremos, à direita e à esquerda. Damos a isso o termo totalitário.
Qual dos dois espectros é melhor? Isso é um julgamento moral que cabe a cada um. Sempre que tentamos definir e qualificar como bom, melhor, mais ou menos assertivo, estamos buscando justificativas morais para nossas escolhas. Isso está longe de ser errado, mas precisa ser compreendido como o que de fato é: uma explicação moral, íntima, baseada em suas próprias convicções.
Em qual lugar você melhor se encaixa e compreende como o que é correto? A resposta é sua, e merece ser respeitada.
Dito isto, devemos enfatizar que ninguém está certo ou errado em seguir um destes vieses, considerando que uma democracia garante a livre consciência política.
O problema está, necessariamente, quando um lado é criminalizado por outro.
2018, um ponto de inflexão
Vivemos hoje um processo de recesso democrático. Entre as eleições de 2018 e hoje, a Democracia saiu de férias e assistiu de longe a ascensão de um grupo político nada afeito ao debate ou às opiniões divergentes.
Das loas à Ditadura Militar (1965 - 1985) aos ataques às instituições republicanas, o atual mandatário e sua trupe institucionalizaram um ódio às esquerdas brasileiras.
Este ódio já existia em setores das classes médias no país. Um ódio não necessariamente ao espectro político, mas às minorias, às classes trabalhadoras e às políticas de igualdade social, como bem aponta o sociólogo Jessé Souza.
No caso, a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, amplificador desse discurso de ódio, representou a oficialização, no executivo brasileiro, da criminalização da esquerda.
Aliado às tecnologias digitais de comunicação, o bolsonarismo tornou-se um movimento político alinhado à extrema-direita
(Imagem/reprodução: Diretoria de Comunicação da UERJ)
E aí, uma rápida reflexão: se uma democracia se equilibra na existência e diálogo entre direita e esquerda, o que acontece se um desses pilares é retirado?
Podemos estar diante de um dos maiores desafios da democracia brasileira recente. Em frangalhos, humilhado internacionalmente, mal gerido e a caminho de uma das piores inflações da última década, o Brasil desgovernado precisa encontrar um rumo de volta às águas tranquilas pré-golpe de 2016.
Contudo, a saída parece estar muito longe de onde estamos.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.