Sextorsão: intimidade em perigo
O problema infelizmente não é novo. Mas os números, são. Num país já tão assolado por tantas mazelas, ostentamos agora o amargo título de Campeões Mundiais de Sextorsão.
Mas o que é isso? É a ameaça da divulgação de imagens íntimas para forçar alguém a fazer algo. Casos assim eram tipificados como assédio, há pouco tempo. Na grande maioria das vezes, o motivo é a vingança; eventualmente, pura e simples extorsão financeira. Money still makes the world go round, by the way.
Lideramos, dolorosamente e com folga, o ranking de casos do tipo, segundo o mais recente levantamento da Trend Micro, empresa especializada em cibersegurança.
Estamos à frente dos Estados Unidos e da Índia, antes líderes no segmento. Em junho deste ano, tivemos mais casos do que a soma do segundo e terceiro colocados. A tendência de crescimento surgiu em 2019, e o resultado, infelizmente, estampa agora manchetes em todo o planeta.
Sentimentos de posse
Há dois casos bastante comuns: um ex-parceiro ou parceira insatisfeito com o término do relacionamento, passa a ameaçar o outro com a divulgação pública de imagens feitas em momentos, digamos, particulares.
Nem sempre é o caso: adolescentes costumam fazer selfies íntimas e enviar a suas grandes “paixões” on-line, sem saber que a pessoa do outro lado não era a pessoa em quem confiava, mas um criminoso cheio de más intenções.
Outro caso se dá quando um hacker intercepta o envio de imagens do tipo entre um casal, praticando a chantagem contra o emissor, o receptor, ou até contra os dois. Não é incomum que se use a tecnologia de deepfakes para deixar alguns momentos mais “críveis”. Se puder, dê uma lida sobre o assunto neste artigo publicado aqui na nossa Prensa.
Pesadelo digital
Um destes casos aconteceu com Jane, cujo nome e de todos os envolvidos foi alterado por razões óbvias de privacidade. A gaúcha, atualmente com 22 anos, é dona de um sorriso marcante. Ano retrasado, foi substituído por lágrimas e um longo período depressivo.
Conforme relatou à nossa reportagem, seu caso não é isolado, mas traz uma faceta bastante peculiar. Desde 2019, ela se relacionava com Juliano. Tinham um romance bastante sólido, cheio de planos e com momentos bem íntimos, se me fiz entender.
Porém, veio a pandemia. Ambos viviam com suas famílias, nas quais se apresentavam pessoas dos grupos de risco. Para o bem de todos, decidiram, mesmo com bastante tristeza, manter o isolamento social.
Vida que seguia, continuavam a se falar todo dia, via aplicativos. Mas sabe como é, desejo quando bate é uma desgraça. Ambos passaram a produzir fotos e videozinhos íntimos para manter a relação aquecida.
Até aí, novidade alguma. Essas demonstrações sensuais-cibernéticas explodiram no auge do isolamento social, tal qual as lives de sertanejos. Em muitos casos, com recomendação expressa de psicólogos e outros terapeutas.
Jane se lembra com clareza do momento em que recebeu um e-mail. Passava um pouco das duas da tarde. Num português truncado, com remetente oculto, dizia ter interceptado cenas suas, enviadas ao e-mail de Juliano. Que em breve haveria uma prova, e então iriam conversar.
Ela ficou preocupada. Avisou o namorado, que a princípio não acreditou que fosse uma ameaça real. Por pouco, a teoria de Juliano não se confirmou: levou uma semana até que uma foto do rosto de Jane, com seu habitual sorriso, fosse publicada numa conta do Instagram. A legenda estampava “a próxima não será tão inocente”. A conta, que marcou diretamente o nome de Jane, não tinha uma identificação clara, mas sim um código alfanumérico de quase vinte dígitos. E mais nenhuma informação.
Horas depois, recebeu por e-mail outra mensagem, de outra conta igualmente não identificada. Agora, bem mais direta, exigindo a transferência de um determinado valor em bitcoins, dentro de 24 horas.
Jane não tinha ideia do que eram bitcoins. Chamou Juliano, que ficou na mesma. Ambos são da área da Saúde, portanto “bitcoin” fazia tanto sentido quanto “bulbospinal” para um profissional de TI. Logo, nada foi feito.
Ao menos, não pelo casal. Porque exatas 24 horas depois daquele e-mail, surgia em outra “conta fantasma” do Instagram, uma nova foto de Jane. Agora em trajes íntimos e com olhar provocante. Detalhe: desta vez, não apenas seu nome foi marcado. A lista incluía Juliano, boa parte de seus colegas da faculdade, irmãos e outros parentes. “Até um pessoal que era de um grupo de jovens da Igreja, que participei na adolescência”, lembra.
A legenda também era provocante. “Imagina como será a próxima foto?”.
Jane denunciou ao Instagram. Em poucas horas, menos de um dia, a foto desapareceu e a conta foi suspensa. Mas o início do estrago já estava em andamento. Ela não queria mais sair de casa, nem atender a chamadas, fossem de vídeo ou telefone.
Certo, estávamos num momento crítico da pandemia, ficar em casa era até recomendável. Só que Juliano havia procurado a delegacia e explicado o caso. Foi pedido que Jane comparecesse pessoalmente para fazer o boletim de ocorrência. Com muito custo, conseguiu levar a namorada. Apesar disso, ela lembra claramente que foi tratada “como se a culpa fosse minha”.
Tão surreal como o pedido para que esperasse com calma um novo movimento por parte do extorsor. Claro, você imagina, isso não demorou a acontecer.
Cenas de terror
Imaginou errado. Quem estava por trás da ação tinha um plano levemente mais elaborado. Imaginando que o assunto já havia chegado à Polícia, saiu de cena. Foram quase três semanas até um novo contato. O texto do novo e-mail: “lembra de mim? Não esqueço você. Vamos brincar?”.
Dignas de filmes de horror, mensagens passaram a chegar sem periodicidade exata. Geralmente, exaltavam algum atributo físico da moça. Jane viveu dias de puro terror psicológico. As mensagens passaram a alternar com a publicação de outras fotos em redes sociais. A maioria, bastante inocentes. Mas o processo de denúncia, acionamento de Polícia e Instagram, relatos aos familiares, e tudo o mais, tornava-se insuportável.
Uma coisa era certa: o criminoso não estava interessado apenas em dinheiro. A humilhação e o assédio psicológico eram partes vitais do processo. A polícia especializada já estava em ação, mas quem fazia as ameaças e as postava era muito bom em seu serviço. Desaparecia quase tão rápido quanto surgiu, sem deixar rastros.
O pior viria numa noite de quinta-feira. Pedindo uma quantia cinco vezes maior em bitcoins, ameaçava publicar na manhã do sábado um vídeo bastante íntimo. Como se não bastasse, as imagens seriam lançadas simultaneamente em diversas plataformas. Instagram, YouTube, Facebook, LinkedIn, “até no TikTok e em grupos de Whats”, ela lembra.
Jane entrou em pânico. Agora, sabia o que eram bitcoins, e não dispunha nem em sonho daquele montante. Como agravante, sabia que o chantagista faria mesmo o que prometia, pois ela se lembrava bem do vídeo em questão.
Passou a madrugada acordada, falando com Juliano, relendo a mensagem várias vezes, entre lágrimas, num tipo de tortura pessoal. Foi quando percebeu um detalhe banal, inútil para qualquer um. Menos para ela.
Começou a gritar como se colocasse algo para fora. Um grito reprimido que despertou a família e provavelmente a vizinhança. Juliano não entendeu. Ela pediu para que o rapaz estivesse pronto, pois passaria em sua casa em quinze minutos.
Pegou um frasco de álcool em gel, e tal qual uma justiceira, colocou sua máscara e entrou no carro, cortando a madrugada porto-alegrense. Pegou Juliano em casa e logo chegou à delegacia.
Às sete da manhã da sexta-feira, seguindo as indicações de Jane, a Polícia batia à porta de um homem de 26 anos, num bairro próximo. Era o ex-namorado de Jane. Terminaram no início de 2018.
O rapaz, em si, não entendia de tecnologia além do básico. Era esportista. Mas tinha um primo muito bom no assunto. Hacker de primeira, com uma lista extensa de invasão à contas bancárias e algumas extorsões, principalmente de empresas.
O ex-namorado pagava ao primo pelo serviço, e planejavam a divisão dos lucros do polpudo depósito em criptomoedas, que esperavam receber. Iriam publicar o vídeo de qualquer modo.
O detalhe é que ele redigia as mensagens, que eram enviadas pelo primo. Talvez no entusiasmo de todo o clima que vinham criando, e tão próximos de conseguir o intento, referiu-se à Jane naquela última mensagem de uma maneira que apenas ele, e mais ninguém, usava. O popular ato falho. Ambos foram presos.
Crimes, no plural
Assim como o crime de Extorsão, a Sextorsão prevê as penalidades previstas no Artigo 158 do Código Penal Brasileiro: reclusão de quatro a dez anos, além de multa. Pode depender do entendimento de quem julga. Ás vezes, há quem prefira enquadrar pelo Artigo 213, que define o crime de Estupro.
A coisa ficou bem regulamentada desde 2018, definida pelos artigos 216-B e 216-C: “registro não autorizado de intimidade sexual” e “divulgação de cena de estupro de vulnerável, cena de sexo ou de pornografia”, ambas categorizadas como “pornografia de vingança”.
A SaferNet, organização não governamental voltada à defesa dos direitos humanos na Internet, faz registros de casos similares desde 2012. Ocorrências como a de Jane, com reflexos como depressão, não são raras. Sua resolução e o apoio familiar, sim.
A regra mais comum nestes casos é a vítima também ser considerada culpada, mas pela própria família, por ter feito o registro das imagens e enviado. Não bastasse a vergonha, é muito comum que as vítimas, em muitos casos bem mais jovens que Jane, sejam ridicularizadas em seus círculos de convivência. Daí para a depressão, é um pulo. Não raro, terminando em casos de suicídio.
Justamente em 2018, ano em que a Sextorsão foi tipicada nos artigos citados, uma pesquisa da SaferNet mostrou que 69% das vítimas são do sexo feminino. Até nesse aspecto, os reflexos de um pensamento machista da sociedade são evidenciados.
A organização mantém uma página atualizada constantemente, com informações e canais de denúncia para ocorrências do tipo.
Todo cuidado é pouco
A recomendações primárias, além de evitar mandar qualquer conteúdo similar para alguém, sobretudo para quem não se conhece pessoalmente e já se tenha uma relação de confiança estabelecida, são:
Fazer o registro de todas as provas de ameaça
Falar com alguém de confiança que possa ajudar
Se possível, procurar um advogado
Fazer um Boletim de Ocorrência diretamente na delegacia, ou
Solicitar ao advogado a realização de um Pedido de Instauração de Inquérito Penal.
Mas no geral, o mundo, tanto real quanto virtual, é cheio de indivíduos que se julgam “espertos”. Sempre alguém vai tentar tirar vantagem de outro. Precisamos sempre ser “mais espertos que os espertos”.
Confesso que não faz muito tempo, recebi um e-mail destes, num português absurdamente mal escrito (o que é bem comum). Ameaçava vazar um vídeo íntimo e fotos comprometedoras. Chegariam rapidamente a minha família, à empresa em que trabalho e à empresa onde meu marido trabalha.
Ok. Apaguei a mensagem. Jamais fiz, e principalmente, jamais permiti que se fizesse algo do gênero. Então, zero preocupação. E esse tipo de tranquilidade, sim, esse não tem preço.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.