Sobre áudios no WhatsApp, o tempo e árvores.
Você está em um trem descarrilhado e precisa sair dele pelo bem de sua vida. Por sorte ou destino, o trem está passando por uma planície repleta de terra, convidativa para um salto sem grandes danos - talvez escoriações. Ainda assim é arriscado e você precisa tomar logo a decisão. Ao seu lado, alguém que viaja com você te cutuca: deseja te dizer algo antes do salto.
Parece algo importante e talvez seja até uma declaração de amor - diante da morte iminente, a pessoa notou o quanto você é especial na vida dela. Mas você não consegue escutar: há pouco tempo, muita adrenalina e você pede pra pessoa falar mais rápido. Tá na hora de pular!
Aí você acorda: era tudo um sonho. Abre seu whatsapp e nota a nova função de ouvir áudios 1,5x mais rápido. Como no sonho! E por algum motivo, esse novo recurso traz aquela mesma sensação: a de que você está vivendo sua vida num trem descarrilhado com pouco tempo para escutar, e menos ainda para amar.
Na vida humana, o tempo é um recurso finito e como escolhemos usá-lo diz muito sobre o “nosso tempo”. Neste sentido, é interessante que na história da cultura humana, o uso do tempo vai se associando cada vez mais a um discurso econômico de produtividade e eficiência.
Segundo Alvin Toffler (no livro A Terceira Onda), a ideia de tempo nasce associada à compreensão dos ciclos da natureza, em especial relacionados ao cultivo da terra. Era preciso saber a hora de arar, semear e colher, bem como as estações do ano, os períodos de chuva ou seca que poderiam interferir. Depois, ao laborar nas colheitas, cantávamos “cantos de trabalho” (como são conhecidos hoje) para embalar os trabalhadores nas tarefas e dar determinado ritmo às funções - claro, além de manter o grupo mais unido.
Na revolução industrial, o tempo parou de ser percebido como cíclico e passou a ser linear: o que contava era o começo, meio e fim de uma montagem qualquer. Havia (como ainda há) cronogramas, horários de entrar e de sair, contagens de peças por minuto. As canções foram deixadas de lado: não se tratava mais de constância rítmica, mas de velocidade, velocidade e velocidade. Cantar nos distraía. Íamos nos desconectando do tempo natural, cíclico, das estações e das luas.
Atualmente, talvez nem linear, nem cíclico: vivemos em tempos de ubiquidade temporal. Estamos em “mais de um lugar ao mesmo tempo”. O tempo “que criamos” em nome de um progresso tecnológico (ou a partir dele) perde não apenas sua conexão com a natureza, mas até mesmo com a própria materialidade - o espaço no qual vivemos.
Lemos assistindo filmes, assistimos aulas fazendo faxina, nos inscrevemos em cursos pra ver a gravação depois, participamos de duas reuniões ao mesmo tempo e por fim, respondemos um áudio entre outras atividades - isso quando não paramos de ouvir para ver outra coisa. Tempos líquidos (conforme Bauman) e de ubiquidade permitida pelas múltiplas telas e a pouca fisicalidade percebida do mundo digital.
A eficiência, o trabalho, o progresso romperam a barreira do físico e perderam certos limites importantes, como o próprio respeito à materialidade da vida e os corpos físicos, mas também relacionais, que a constituem. Ainda não li “Sociedade do cansaço”, de Byung-Chul Han, mas quem vive neste século sabe - e sente vergonha de assumir - que as relações humanas também estão sofrendo com (ou assimilando?) uma cultura de desempenho.
Em tempos de ubiquidade tecnológica e empreendedorismo pessoal - em grande parte impulsionada pela precarização dos empregos - nos tornamos escravos de nossas próprias agendas e temos pouco tempo para ouvir sobre assuntos “improdutivos”. Como falar com nossos pais, filhos, namorados e amigos passa longe de ser produtivo ou eficiente, também não é “importante” nem “urgente”.
O mais assustador nisso, em minha opinião, é também a questão psíquica e individual. Em uma era de cancelamentos e “block” nas redes, em que deixamos de falar com pessoas em um clique ou por causa de um post, agora temos a possibilidade de ouvir o que outros têm a dizer na velocidade que nós queremos.
Substituímos o tom de voz natural do nosso amigo, o calor de sua fala, suas pausas emotivas, seus esquecimentos, digressões ou redundâncias - tão comuns numa conversa - por uma aceleração robótica, calculada para conseguirmos para economizar tempo sem prejudicar o entendimento da informação, eliminando o supérfluo. Eficiência.
Em uma sociedade de desempenho, mas também narcisista e pueril, na qual precisamos ser notados a todo instante e paradoxalmente “jogamos no lixo” o que não está do nosso jeito, também jaz o tempo do afeto, da escuta, da poesia, da própria alma (que precisa de tempo para aprender e se transformar) e do ritmo profundo cadente e percussivo do primeiro instrumento musical que conhecemos e que nos habita: o coração.
No meio tempo em que pensava neste texto, minha esposa, em sua intuitiva sabedoria, insistiu para que fôssemos passear no parque (devidamente de máscara e em um horário bem vazio). Eu gosto muito de parques: posso caminhar em silêncio - sempre sob alguns protestos da companheira muito conversadeira - e observar a natureza ao meu redor. Lá eu posso ver as árvores: seres magníficos que chegaram a alturas inalcançáveis por mim crescendo… centímetros… talvez milímetros, todos os anos durante décadas, talvez séculos.
Seres feitos de pura madeira, mas também de uma paciência, suavidade e determinação implacável, mantendo-se de pé diante de todos os revezes naturais e humanos e para mostrar a todos, nas texturas de seus troncos, as cicatrizes do tempo que nenhum outro ser poderia contar.
Eu observo maravilhado que por entre as cicatrizes, nascem galhos novos, caminham formigas, pássaros e outras plantas encontram ali sua hospedagem. Fora de nossas ilusões de progresso, eficiência e controle sobre o outro a todo custo, a natureza segue em passos lentos, firmes e maravilhosamente gentis.
A beleza da vida sobrevive ao “nosso” tempo.
Imagem de capa - Foto de Fabrizio Verrecchia no Pexels
Este artigo foi escrito por Felipe Oliveira e publicado originalmente em Prensa.li.