Sociedade polarizada, eleição polarizada
Deserto de ideias, colocam país numa encruzilhada presente e futura. Foto: meussertoes.com.br
Castigado por Zeus, o titã Prometeu foi acorrentado no monte Cáucaso onde uma águia (ou abutre) devorava seu fígado durante o dia e o órgão regenerava à noite para a continuidade do tormento. Civilizações antigas como a grega consideravam o fígado o guardião da alma e dos sentimentos. Pode-se inferir que isso tenha influído num popular axioma a recomendar usar a razão ao invés da emoção. Em outras palavras, preferir o cérebro ao fígado.
Em política, é popular o princípio de não se usar o fígado. Explica-se: decisões políticas com base emocional costumam ser desastrosas. Na vida comum do cidadão também assim acontece, por isso o envolvimento emocional com certas lideranças. Se o fígado rege os principais interessados nas políticas públicas, o que esperar além da polarização?
A resposta vem sendo estampada em levantamentos eleitorais. Cada vez mais a divisão da sociedade se torna evidente em gestos, símbolos e comportamentos. E é isso. Não há debate, pois o diálogo é inviável. Não se discute a respeito de projetos políticos, já que as lideranças são os próprios projetos. Não são alinhavadas alternativas por falta de espaço e interesse.
Ao fim e ao cabo, resta uma discussão rasa sobre preferências, sem abordar problemas, soluções ou perspectivas. A complexa realidade de um país desta dimensão é reduzida a um campo de batalha, onde os atores primam pela agressividade e visam somente se defenestrar. Num ambiente assim, seria provável surgir um terceiro contendor viável. Contudo, isso ainda não aconteceu. Por que será?
O “Tertius Gaudens”
Ao sociólogo e professor alemão Georg Simmel é atribuído esse termo latino que significa “terceiro beneficiário”. Com aplicação em economia, passou a integrar a Teoria da Competição. Nela, o terceiro inclusive incentiva a competição e não é um agente distante; ele opera próximo ao contendores e tem uma relação com estes, mas independente e decisiva. É uma variação do Divide et Impera, que cria o conflito para adquirir uma posição de vantagem.
Trazendo a definição para a política, o terceiro se beneficiaria, no caso, de um conflito existente. E qual é esse conflito? Hoje ele é primariamente pessoal e é ideológico somente do ponto de vista secundário. Coloco desta forma por termos atores muito semelhantes do ponto de vista político, principalmente em sua relação com a democracia. Há diferenças em atitudes e posicionamentos verbais, mas na visão entendem a democracia como meio e não como fim.
De forma que o terceiro para se destacar deveria assumir um posicionamento divergente. O problema é o pouco valor dado à democracia por grande parcela do eleitorado por falta de conhecimento ou preconceito. Há no imaginário político-coletivo a ideia cristalizada do líder absoluto ou “salvador da pátria”, aquele ser dotado de todas as habilidades como Pandora, mas que, ao contrário da criação mitológica, traz somente as desditas.
As eleições em segundo turno acabam reforçando a polarização, ao invés de conferir mais legitimidade ao Plano de Governo em tese o melhor para confrontar os problemas. Aliás, o Plano de Governo é uma peça de ficção num embate apenas ideológico ou personalista.
Paralelamente, a democracia é vista como um regime fraco e permissivo e o voto como instrumento de barganha ou uma obrigação desnecessária. As dificuldades derivam
justamente da falta de reflexão e do alinhamento superficial. Enquanto esse senso comum perdurar, teremos grandes dificuldades.
Problema mundial
A busca por alternativas políticas não é exclusividade do nosso país. Nas eleições americanas de 2020, haviam nada menos que nove candidatos alternativos. Entretanto, a campanha de fato se desenvolveu entre Trump e Biden. Na França, novamente a eleição foi decidida entre Macron e Le Pen. Por estes exemplos, é possível avaliar o quanto é difícil romper o dualismo, mesmo em democracias mais sólidas.
Norberto Bobbio falava sobre o “Terceiro Ausente” no início dos anos 80. Anos depois, abortou justamente o problema do terceiro na política, considerando o contexto da Guerra Fria – outra dicotomia que volta a ter relevância com a guerra da Ucrânia. Portanto, na geopolítica há também o problema da polarização.
É um erro supor que em todos os casos há somente dois agonistas em franca oposição na disputa. Há tanto na política local como na geopolítica outros atores que, se não protagonizam, podem influenciar nos resultados. O drama brasileiro é que, permanecendo com baixos índices de popularidade e altos índices de rejeição, nem influência os demais candidatos vão ter.
E essa terceira via que todo mundo procura vai aparecer justamente no Brasil? Só se Deus for brasileiro mesmo. Por via das dúvidas, é bom estocar remédios para o fígado.
Este artigo foi escrito por Renato Assef e publicado originalmente em Prensa.li.