Spot, o cãozinho heavy metal
E então você estava lá, feliz, no show do Post Malone em pleno Rock in Rio 2022, ou quem sabe, do Justin Bieber.
De repente, seus olhares se cruzaram. Você, desavisada ou desavisado, apenas curtindo um som e amassando um barro na cidade do rock. Mas não teve como disfarçar. Alguém te observava. Com uma visão penetrante, parecia vasculhar cada milímetro do seu corpo. Analisando cada um dos seus gestos.
Ante a intrusão, você arrisca alguns passos no meio da multidão, tentando ficar invisível ao autor dos olhares. Não adianta. Com passos rápidos e precisamente calculados, ele continua de olho em você.
Com todo o incômodo da situação, você disfarça e tenta dançar, para ver se ele desencana e se afasta. Nada feito. Para piorar, você dança mal. E talvez chame mais atenção. Passados alguns segundos, ele conclui que está tudo bem, e se afasta. Você está livre. Ele foi procurar outro alvo.
O dono deste olhar frio e calculista não era humano. Era um cachorro. Seu nome: Spot. E ele sequer estava vivo.
O bicho vai pegar
Apesar de parecer uma história de terror, isso aconteceu diversas vezes durante os shows do Rock in Rio. Não era uma versão moderna de Cérbero, o cachorro de três cabeças que guarda os portões do inferno, na mitologia grega; tampouco um bichinho de estimação do cramulhão, ou o Cão do Cão. Não.
Spot é um produto da mais alta tecnologia. Faria mais sentido se você estivesse no show do Iron Maiden. Não dá pra ser mais metal que isso.
Criado há alguns anos pela Boston Dynamics, é um cachorro robô que impressionou meio mundo fazendo algumas estripulias com mais desenvoltura que um cãozinho treinado faria, e com mais precisão que o Exterminador do Futuro sonharia.
Depois de algumas participações de sucesso na vigilância de shows e eventos de grande porte, algumas unidades Spot foram levadas para o Rio de Janeiro. Sua missão: patrulha, organização de filas e até a possibilidade (que se espera, remota) de intervir em conflitos. Afinal, o visual do monstrengo te faria pensar duas ou quinze vezes antes de criar algum tumulto.
Com 1,10 de comprimento, tem o tamanho de um cachorro médio de verdade. Mas já mostrou seu valor logo nos primeiros dias do evento. Spot botou para correr um bom número de penetras que invadiam o local através do acesso da lagoa de Jacarepaguá.
Muito Black Mirror
O modelo (ou a raça) do robô utilizado na cidade do rock é o Yellow Spot, que como o próprio nome já diz, é amarelinho. Tal qual o desespero de quem o encara.
Lembra da expressão “isso é muito Black Mirror”, que ficou famosa há alguns anos? Pois é, pode usar à vontade. Spot lembra muito os cãezinhos robóticos apresentados no episódio Metalhead, da quarta temporada.
Mas, em vez de matar implacavelmente, Spot é equipado com uma inteligência artificial de ponta, chamada GenzAI. Segundo o fabricante, ele é capaz de “fazer rondas, analisar o ambiente e tomar providências no caso de atitudes suspeitas”.
Não que ele já parta para a ignorância: o bicho tem uma série de câmeras de monitoramento (tá aí a razão do olhar implacável), sensores de temperaturas, detector de fumaça e gases variados, e são programados para salvamento de humanos em situações críticas. Nesse ponto, Spot estaria mais para o Bionicão do desenho animado dos anos 1970 do que para o cão do tinhoso que pintei no começo do texto.
Posso ter carregado um pouco nas tintas para impressionar o leitor, mas o cachorrobô não age o tempo todo por vontade própria. Com um potente transmissor 5G, envia as informações em tempo real para a base de vigilância, que pode direcioná-lo para que tome atitudes mais adequadas. Ou não.
Eficiência canina
Além de todas estas qualidades, Spot ainda conta com uma característica que o torna indicado para o Rock in Rio. Afinal, o robô é muito bom de ginga. Duvida? Há um vídeo oficial da Boston Dynamics que o mostra fazendo uma coreografia ao lado de Mick Jagger, numa perfeição encantadora, não fosse realmente assustadora.
Unidades Spot têm sido usadas com cada vez mais frequência na vigilância de eventos. Na Espanha, foram presença em tempo integral no torneio de tênis Mutua Madrid Open. Ficamos tentados a imaginar se um deles não pensou bilhões de vezes (numa fração de segundo) em correr atrás da bolinha.
Spot também não é novato no Rock in Rio; agiram com sucesso na mais recente edição europeia do festival, o Rock in Rio Lisboa. Não que tenha repetido a coreografia com Jagger, mas desencorajou muitos lisboetas a tomar atitudes desaconselháveis.
Quem também deve ter lembranças (e provavelmente não muito agradáveis) da família do Spot são imigrantes ilegais que tentam cruzar a fronteira mexicana com destino aos Estados Unidos. Cãezinhos eletrônicos fazem a monitoração de pontos mais críticos, e há quem garanta que, apesar de não morder como seus contrapartes animais, podem ser até mais eficientes na detenção.
Mas as utilidades práticas de Spot podem ir além. Bem além. Onde ninguém jamais foi. Dentro da Força Espacial dos EUA e da própria NASA é consenso que unidades cachorrônicas serão enviadas à Marte, para realizar busca de sinais de vida com muito mais eficiência do que os atuais rovers podem realizar.
Perigoso pra cachorro
E, como o ser humano é muito bom em pegar uma ideia e estragar, alguém já colocou armas de paintball no dorso do Spot e promoveu combates com bolas de tinta entre robôs e humanos. Mas, como diria Murphy, não o Robocop, mas a famosa lei, “nada é tão ruim que não possa piorar”.
Há uma corrente de pensamento dentro dos sistemas de segurança dos Estados Unidos bastante tentada a instalar armas reais em alguns destes Spot. Mais como um aviso. Spot, certamente, não é tão assustador quanto alguns de seus “irmãozinhos”, outros dróides e andróides criados pela Boston Dynamics. Mas são igualmente precisos.
Não somos autoridades em robótica, ou em inteligência artificial. Mas só imagine a possibilidade disso dar muito errado.
É esperar para ver. De preferência, numa distância bem segura.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.