Stalkerware: amor demais não é amor
No início da pandemia, por pressão do rapaz, ficaram noivos. Segundo afirmava, quanto menos saíssem de casa e encontrassem menos pessoas, mais seguro seria. Em menos de cinco meses, Rui insistiu e mudou-se para o pequeno apartamento da noiva, na região central da cidade.
Ela passou a viver em função dele. Apenas Rui saía de casa, quando necessário. Motivos de segurança, de saúde, alegava. Círculo de amizades, nem pensar. Família, apenas em casos restritos. O casamento oficial estava planejado para o final de 2022.
Marcação cerrada
Com o afrouxamento das medidas de isolamento social, Marina voltou a procurar as amigas. Sentia falta das risadas, do companheirismo. Algumas, conhecia desde os primeiros anos da escola.
Presumivelmente, Rui não aprovou. Aceitou que Marina as encontrasse, contanto que ele fosse junto.
A cena repetiu-se por mais duas ou três vezes. Rui não fazia a menor questão de ser agradável. Passou a exercer uma marcação tão constante que constrangia as amigas e envergonhava Marina.
Mais ou menos na mesma época, ela passou a trabalhar em sistema semi-presencial. Almoçava na rua, geralmente com o pessoal do escritório, em algum restaurante próximo. Vez ou outra, Rui passou a surpreendê-la, convidando-se a almoçar com a equipe.
Marina e o pessoal mudavam de restaurantes, mas não raro Rui surgia no estabelecimento poucos minutos depois que a noiva chegava.
Marina passou a questioná-lo, e ele alegava que eram coincidências do amor. Que não se deve questionar os desígnios do destino. E que raios caem duas vezes no mesmo lugar.
Algo errado não estava certo
Ela começou a desconfiar que os raios já haviam se transformado em tempestade. Algo não parecia correto. Certo dia, Marina resolveu colocar as estatísticas à prova. Combinou de encontrar uma amiga em um shopping no final da tarde, e disse à Rui que iria visitar uma tia, da qual notoriamente o noivo não nutria nenhuma predileção. Para completar, ficava do lado oposto da cidade.
Corta para o shopping. Praça de alimentação. Muita gente. 18h30. Marina e a amiga se encontram. Não se viam desde antes do início da pandemia.
Nem cinco minutos após, Rui irrompe no mesmo ambiente. Dando escândalo, aos prantos. Celular na mão, gritava a plenos pulmões que não podia mais confiar nela. Que se não fossem embora dali na mesma hora, ele "daria um tiro na cabeça".
Marina não foi embora. Tampouco Rui deu um tiro na cabeça. Em vez disso, e em meio à muita choradeira, vitimização, drama e ameaças veladas, tirou as coisas da casa dela e foi morar com um amigo.
Continuou procurando-a por algum tempo. Recentemente, ela conseguiu uma medida protetiva restringindo a proximidade de Rui, por força da lei.
Histórias como a de Marina e Rui acontecem com certa frequência. Mais do que o aceitável, se isso fosse minimamente aceitável.
Um dom especial
Mas no final das contas, como explicar o dom premonitório de Rui, fazendo-o aparecer de sopetão nos mesmos lugares onde estava sua amada? Seria a força do amor? Seria Rui um novo Nostradamus, ou se preferir, uma nova Mãe Dinah? Seu ciúme doentio alargava os portais da percepção?
Nada disso. A explicação é bem mais prosaica, evidenciada na cena da Praça de Alimentação. Volte alguns parágrafos e confira.
Enquanto fazia escândalo, Rui brandia um celular em suas mãos. Utilizava, há tempos, sem consciência ou consentimento por parte de Marina, um stalkerware.
Há dezenas de aplicativos com esta finalidade, tanto para Android quanto para iOS. Programinhas malandrinhos que rastreiam a localização de seu alvo (o cônjuge), permita que se ouça e grave ligações e conversas, em alguns casos replicam a tela do aparelho do outro, bastando para isso apenas o “espião” ter o número da vítima em sua lista de contatos.
Alguns destes sistemas maliciosos têm a capacidade de entregar o controle da câmera do celular espionado para seu usuário. A vítima não tem um minuto de paz!
Tais aplicativos não prometem trazer de volta a pessoa amada em dois dias. Mas na maioria das vezes, sem que as vítimas suspeitem, facilitam a vida dos perseguidores, cheios de ciúmes e desconfiança, transformando a vida da parceira ou parceiro em um inferno repressor, com toques de violência.
O desfecho para o caso de Marina pode ser considerado um “final feliz”, ou ao menos sem maiores consequências. Há outros stalkers mais obcecados que Rui, que não desistem. Não é incomum que muitos cheguem às vias de fato.
Pesquisei diversos aplicativos com estas características, muitos gratuitos. Não irei divulgar nomes pois esta não é a função desta reportagem. A maioria garante sigilo total para seus usuários, antes de mais nada infringindo um sem número de direitos e liberdades do cidadão comum. Pela lógica, sequer deveriam ser disponibilizados nas lojas de aplicativo.
Vigiando os vigilantes
Longe de ser um fenômeno restrito a um casal no interior paulista, o problema do stalkerware é, de fato, mundial. Tanto que uma organização independente voltada à sua erradicação foi fundada em 2019. Mantida por empresas de tecnologia, serviços de apoio humanitário e jurídico, a Coalition Against Stalkerware atua internacionalmente combatendo a proliferação e o uso destes sistemas, além de coibir a violência cibernética.
Em relatório, a Coalizão afirma que em 2021 houveram 32.700 usuários únicos sob ataque, o que já é menor do que os índices de 2020. A primeira baixa desde que os dados passaram a ser coletados, ainda em 2018. A queda pode ser explicada parcialmente pelo tempo prolongado da pandemia: pessoas saem menos, são menos seguidas; mas isso, como no caso de Marina e Rui, pode indicar um perigosíssimo aumento da coerção e violência, mesmo que psicológica, entre quatro paredes.
Segundo a Kaspersky, empresa de cibersegurança, membro da Coalizão desde a fundação, e que esteve à frente desta pesquisa, há um dado alarmante em relação ao público brasileiro: de cada quatro usuários de celular em território nacional, um está ou esteve sendo espionado por estes aplicativos. É um número alto e preocupante demais.
Amor sufocante
E o capricho dos criadores destes sistemas é cada vez maior. Tanto que foi criada uma subcategoria dentro do cyberstalking, esta modalidade de espionagem individual: não são mais apenas stalkerware, mas sim os spouseware. Sim, adivinhou, aplicativos dedicados tão somente a investigar a pessoa amada.
Especialistas em cibersegurança dão algumas dicas preciosas para descobrir se você é vítima da atuação de aplicativos deste padrão. Em primeiro lugar, fique de olho no nível de sua bateria. Se de uma hora para outra ele passou a descarregar com mais velocidade, já acenda um alerta (a não ser que você seja proprietário de um iPhone, que faz isso sem esforço extra algum);
Verifique quais aplicativos tem permissão para uso do microfone e câmera. Se achar algum suspeito, desautorize-o; observe também o gasto de dados de conexão, tanto em Wi-Fi quanto móvel. Aumentar de uma hora para outra é um bom indicativo de que algum sistema está usando seu aparelho sem sua influência direta.
O mesmo se aplica ao sistema de geolocalização do seu celular. Se acha que tem algo errado, desative e ative manualmente apenas quando tiver necessidade.
Apesar de todas as precauções, alguns dos aplicativos pesquisados para a produção desta reportagem prometem ação “sem alterar o desempenho do aparelho monitorado”. Ou seja, não há garantia total de segurança.
Mas, longe de ser esse o lugar, cabe a dica mais importante: preserve-se. Ao perceber que uma relação está ficando potencialmente tóxica, procure ajuda. Obsessão não é amor. Saiba detectar os sinais e se afastar. Antes que o pior possa acontecer.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.