Strange World (2022)
Meu filho já tinha assistido Mundo Estranho (2022) nos cinemas quando veio passar as férias de verão comigo, mas gostou da ideia de reassistir. Não que eu precise de alguma desculpa para apreciar uma animação, mas é sempre bom fazê-lo na companhia do meu filhote. Eu me surpreendi bastante com o filme. Principalmente com o conteúdo marxista que vi nele. Exato. Marxista.
O texto a seguir contém spoilers. Sugiro assistir o filme antes de ler a partir deste ponto.
Não, não estou caçando provocação. Eu sei o que a palavra marxista incita no âmago de algumas pessoas, principalmente depois dos últimos 4 anos. E é uma pena, porque eu entendo que tal reação só se dá por uma combinação quase infantil de ignorância e preconceito, e a incapacidade de uma classe inteira de pessoas de abrir um livro pra ler.
Então espero conseguir elucidar o que vi de marxista na sexagésima primeira produção animada da Disney em 100 anos. Deixo claro desde já que não sou qualificado como cientista político, filósofo ou sociólogo. Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem parentes importantes, mas com uma certa consciência de classe.
“Pfff. Disney e marxismo, tá bom.” Eu ouço você dizendo dentro da minha cabeça, caro leitor imaginário. Saca só. Em Mundo Estranho, a Disney apresenta: um casal inter-racial; um adolescente abertamente homossexual; uma variedade étnica considerável no elenco de personagens; e um cachorro com necessidades especiais. “Ah, mas é lacre, pra vender ingresso” você responde, irritantemente. Ok, mas é o que é, não é? Esse é o primeiro ponto de uma visão um pouquinho mais canhota que tá rolando no castelo do Mickey. Tá preparado pra mais?
Que tal o fato de que o filme se desconecta completamente de qualquer visão de mundo diretamente cristã? Começamos o filme em uma situação, com Jaeger Clade (Dennis Quaid) liderando expedições aventureiras com uma equipe que inclui seu filho adolescente Searcher (Jake Gyllenhaal) em uma busca infindável pelo próximo desafio. Uma ruptura entre os personagens nos joga 25 anos no futuro, onde Searcher agora possui sua própria família e é responsável por elevar o status de Avalônia a uma utopia.
Nesse ponto, os personagens vivem em moderada harmonia, embora os apupos da adolescência já comecem a despertar em Ethan (Jaboukie Young-White) um certo desejo de distanciamento dessa ordem estabelecida. Não existe nenhuma força superior ao qual os personagens delegam seu destino. Não existe nenhuma ordem pré-estabelecida formalizando suas relações que não seja a própria humanidade dos personagens.
Searcher é um pai atencioso e compreensivo, mas nem por isso deixa de envergonhar o filho em frente aos seus amigos e interesse amoroso. A homossexualidade de Ethan tratada com naturalidade e respeito. Te falo em utopia.
Searcher é o responsável por descobrir e explorar o Pando, uma fonte de energia natural e renovável, que fornece conforto e infraestrutura a toda Avalônia. A vida em sua fazenda é idílica, com a família interagindo sem maiores conflitos, exceto pela dúvida de Ethan em levar a vida de fazendeiro escolhida pelo pai.
Eventualmente, alguém do passado de Searcher volta para convocá-lo a uma missão: o Pando está ameaçado por uma praga de origem desconhecida, e é preciso explorar novamente lugares inóspitos para descobrir a causa e restaurar a ordem. Searcher é relutante, Ethan recebe o chamado para a aventura e o que se segue é um espetáculo de cenas intensas de ação, orquestradas visualmente de forma virtuosa e todos os elementos que fazem a Disney ser a Disney.
Mas eis que, ao tentar restabelecer a ordem, os personagens se deparam com um problema. Cada um tem uma visão diferente do que o problema é. Um personagem acredita que continuar explorando é a única solução e o único objetivo possível. Outro acredita que conservar o atual status quo é a melhor opção. A cena que resume este empasse é ilustrada nas regras do jogo que Ethan coleciona com os amigos, e tenta ensinar ao pai e o avô, em um momento de conexão familiar.
O jogo (parabéns, Disney, vocês entendem de product placement pra caramba) é justamente a solução do exato problema que eles tentam resolver. Nas regras do jogo, o objetivo não é combater vilões ou monstros, como ambas as gerações anteriores de Ethan acreditam, mas sim equilibrar um sistema de forma harmoniosa. Ambos parecem não entender como fazer isso. E aqui adentramos a alusão marxista inserida no roteiro ( a meu ver, repito):
Ao tentar restabelecer a ordem e corrigir o problema com sua fonte de energia, o grupo todo coloca todo ecossistema de Avalônia em risco. Um dos momentos de maior impacto pra mim, é quando Ethan e Searcher acabam se desviando do grupo e descobrindo que Avalônia nada mais é do que um ser vivo titânico (uma tartaruga, para ser mais exato). Tal visão de mundo não é novidade. Nativos americanos e asiáticos possuíam a mesma crença milênios atrás, tal mitologia já foi explorada inclusive por Stephen King em IT e Dark Tower, porém a ruptura disso com nossos signos dominantes da cultura cristã é muito impactante.
Os personagens passam, então, a viver em um mundo que não foi criado para eles por um ser cósmico que os moldou à sua imagem e semelhança. Em vez disso, eles passam a se entender como parte de algo, e isso lhes esclarece justamente a solução para o problema. Das entranhas desse animal/planeta/terra surgia a fonte de energia necessária para que o conforto e progresso de Avalônia existisse, mas, na verdade, essa fonte de energia estava acabando com o próprio animal/planeta/terra.
Existe uma certa resistência por parte dos personagens em fazer o necessário: destruir com o Pando para restaurar não a ordem anterior, mas gerar uma revolução para uma forma mais equilibrada de existência, entre os humanos de Avalônia e a própria Avalônia. Uma vez que os personagens se unem nesse objetivo e param de combater o que eles antes acreditavam serem monstros, e não viam como parte do processo de trabalho que os fornecia seu conforto e progresso, tudo se resolve.
Estão vendo onde estou querendo chegar? Se você algum dia já prestou atenção ou leu algo a respeito de Karl Marx, pode ser que você entenda como eu vejo uma versão muito soft do comunismo em um filme animado da Disney. Se você tomou cloroquina e tava até ontem na porta de um quartel, provavelmente parou de ler em “casal inter-racial”.
Mundo Estranho é uma animação muito bacana. Não foi bem recebida, e não acho que tenha usado todo potencial do conteúdo sobre o qual se debruça. A estética demi steampunk e referente à pulp fiction clássica se abaixo da camada gritante que quer conversar com novas gerações. Mas esse não é o maior problema pra mim. Ousado teria sido deixar realmente clara a consciência de classe que os personagens assumem. Ilustrar de forma direta, e não sutil, que o que eles combatem desde o começo não eram monstros disformes e hordas de seres repetidos. Era a própria classe operária que os alimentava.
Marcel Trindade não é crítico de cinema, mas gosta de falar sobre. Você pode ver o trabalho dele como ilustrador em www.marceltrindade.com
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Este artigo foi escrito por Marcel Trindade e publicado originalmente em Prensa.li.