Streamers do Sono Interativo: quanto vale o show?
Boas horas de sono, além de prazerosas, são recomendáveis. Mais que recomendáveis: necessárias. Estar em dia com o travesseiro tem inúmeras vantagens. Ajuda no aprendizado, melhora a qualidade de vida e deixa a saúde emocional estável.
Se isso ainda não lhe convenceu a ficar mais um pouquinho entre os lençóis, anote: dormir bem diminui os riscos de problemas incômodos como diabetes, hipertensão e, de quebra, ainda diminui bastante a chance de um ataque cardíaco, que pode ser realmente desagradável.
Uma pesquisa realizada em 2020 pela Universidade de Otago, na Nova Zelândia, revelou que pessoas que se privam de um bom soninho desenvolvem em pouco tempo sintomas depressivos. Anote no seu caderninho que o estudo foi realizado com 1.110 jovens entre 18 e 25 anos. Esta informação vai cair na prova, digo, fará sentido mais para a frente nesta reportagem.
A pandemia do Sars-Cov-2, nosso íntimo Covid-19, alterou muito as condições de vida e tirou – literalmente – o sono de muitos. Muita gente não dorme direito por preocupações ligadas ao vírus que habitam seu subconsciente, ou pela mudança de hábitos em quem passou a realizar trabalhos à distância ou, pelo menos, semipresenciais.
Segundo a psicóloga e jornalista Camila Tuchlinski, os problemas vão além do desgaste físico: "esse indivíduo pode apresentar uma série de danos que passam pela perda de memória de curto prazo (pois o sono é o reparador dela), falta de atenção, irritabilidade e até comprometimento das relações com outras pessoas".
Acredito que já deu para entender a importância de dormir bem.
Quanto vale o sono?
Tem gente que levou essa pergunta a sério; mais que qualquer limite de razoabilidade poderia permitir. Tem gente – muita gente – que está trocando suas horas de sono por dinheiro.
Nos últimos meses, proliferaram no Twitch e no TikTok, redes sociais baseadas essencialmente em vídeos, streamers se sujeitando a dormir enquanto o público assiste. Só isso já seria um tanto bizarro, mas a coisa ganha uma tonalidade especial quando o espectador, após uma doação em torno de um dólar, pode acordá-lo, de maneira agradável. Ou não.
Os “streamers de sono interativo”, como são chamados, sujeitam-se a ser acordados através da ação de acessórios preparados especialmente, ativados por quem paga. Sirenes, ruídos altos, flashes de luz, choques elétricos, baldes de água gelada (ou de farinha) caindo sobre suas cabeças. Como diria o Homem do Baú, aqui se “topa tudo por dinheiro”.
Segundo matéria da revista norte-americana Wired, há alguns casos assustadoramente lucrativos. Por exemplo, o australiano Jakey Boehm, que faturou cerca de 170 mil reais nessa brincadeira, somente durante o mês de maio deste ano. Você não leu errado. Fica mais impressionante quando descobrimos que cada doação média gira em torno de apenas um dólar, ou cinco reais.
Não que o valor seja fixo. Há outras “ações” que podem ser feitas num valor mais chocante: 95 dólares, ou uns 480 reais. Chocante é o termo correto, pois nesta modalidade o generoso espectador tem a oportunidade (e o direito) de emitir um choque elétrico no pobre influencer dorminhoco. É uma das coisas a que se sujeita o dinamarquês Mikkel Nielsen.
Mas é claro que nós na Prensa não iríamos apenas comentar o que saiu por aí. Fizemos questão de acompanhar minuto a minuto (e nos privando do próprio sono) as desventuras do streamer Pimp Danny que, segundo disse, havia voltado de uma longa viagem e resolveu tirar aquela sonequinha, por sua conta e risco, monitorado por 14.200 seguidores compreensivos e bem intencionados.
Foi um festival de luzes led coloridas, ruídos e músicas dos mais variados tipos, alguns lembrando o saudoso gemidão do zap. Danny ganhou uns trocadinhos. A preocupação com a própria saúde, se é que tem, ficou para depois. Ficamos entre o riso culpado (como quem assiste videocassetadas) e a consternação.
Status: caindo de sono
Há também quem faça o contrário: no primeiro semestre de 2021, o norte-americano Ludwig Ahgren bateu um estranho recorde, atingindo um milhão e meio de horas assistidas em lives, enquanto simplesmente dormia. O detalhe é que sua live durou cerca de 31 dias ininterruptos. Algo muito próximo da hibernação ou do coma.
Essa estranha obsessão pelo sono alheio teve início quando o streamer Jesse D., visivelmente cansado no Twitch, “apagou” em frente ao computador - como pode acontecer a qualquer um e, inclusive, já aconteceu com quem está escrevendo esta reportagem.
A diferença é que Jesse estava no meio de uma live. Na frente de uma câmera. Ao vivo. Seu cochilo, que levou três horas, explodiu em número de visualizações. Muito mais do que ele estava acostumado a receber ou, literalmente, poderia ter sonhado. Segundo dados da própria rede, é um dos vídeos mais acessados da história da plataforma, com 3 milhões de visitantes únicos.
Esta privação voluntária – e lucrativa – do sono traz alguns problemas. É provado que trabalhadores que fazem jornadas duplas de trabalho, ou os que trocam a noite pelo dia (como jornalistas, por exemplo) costumam ter problemas cardiovasculares com mais frequência. Isso nos leva ao começo desta reportagem, e àquele dado perturbador do público entre 18 e 25 anos. Justamente a faixa etária onde se encontra a maioria destes streamers.
A psicóloga Camila Tuchlinski aponta ainda uma outra consequência, bastante grave, sobre quem pratica as sonecas interativas e, também, para os aficionados por elas: "o isolamento social, na medida em que o indivíduo fica obcecado com a situação e não tem mais tanto interesse em interagir fora do mundo virtual".
Sono é sério!
Consultada pela reportagem, a Dra. Denise Vettorazzo, do Laboratório de Neuromodulação e Desenvolvimento Humano da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), considera a normalização deste tipo de comportamento um sintoma de doença psicossocial.
Quem se diverte com o sofrimento alheio – mesmo que o alheio se sujeite a fazê-lo em troca de dinheiro – não enxerga quem está do outro lado da tela como ser humano, e sim como um objeto. Já os streamers demonstram mais que necessidade por dinheiro, desespero por atenção.
Denise destaca outros problemas físicos que a privação do sono traz a tiracolo, além dos abordados nesta reportagem. Para começo de conversa, é justamente durante o sono que o corpo realiza as funções regenerativas. É o momento em que tecidos lesionados são refeitos, por exemplo.
Ela enumera uma série de efeitos causados pela progressão da falta de sono:
Poucas horas - semelhante à embriaguez. Chance de pequenos acidentes domésticos até acidentes de trânsito.
24 horas - a possibilidade de acidentes de trânsito aumenta, com falha em diversos reflexos.
48 horas - é o momento em que alucinações se manifestam. De brinde, um excelente gatilho para a instalação de doenças mentais severas em indivíduos que tenham propensão. Uma vez instaladas, podem significar medicação para toda a vida.
72 horas - seria engraçado se não fosse trágico. É o estágio onde a pessoa passa a dar cochilos involuntários. Não importa onde ou com quem estejam. É só o corpo pedindo desesperadamente por descanso, e pronto.
96 horas - aqui a coisa fica feia. É o estágio onde as psicoses chegam com tudo. Se você só conhece o termo como título de um filme de Alfred Hitchcock com uma clássica cena no chuveiro, ou ainda uma série de TV, saiba que neste estágio a pessoa diz adeus à realidade. As sinapses falham e o cérebro vira uma grande arena de vale-tudo. Tudo faz sentido ao mesmo tempo em que nada mais faz. Fez sentido para você? Que bom!
Efetivamente, não há dinheiro que pague seu sono. Será?
Como aqui não dormimos no ponto, resolvemos perguntar no Twitter, rede social vizinha, se algum tuiteiro se sujeitaria a um esquema parecido. As respostas foram as mais diversas, mas pinçamos a melhor: “Minha vida é uma privação de sono para ganhar uns trocados”. De acordo.
E você? Qual sua opinião? Faria esse tipo de maluquice? Queremos saber!
** Colaborou Clarissa Blümen Dias
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.