Superman: O Beijo da Discórdia
Mas é exatamente o que muita gente fez ao ler, ou melhor, ou ficar sabendo da existência da série de HQs Superman: Filho de Kal-El, até agora lançada apenas nos Estados Unidos, com previsão de publicação nacional a partir de novembro de 2021.
Muito bem. Se você é dos que ouviu falar, saiba de um fato que pouparia muita saliva dos detratores: o Superman desta história não é o Superman que todos conhecemos, e sim Jonathan Kent, filho de Clark Kent com Lois Lane. Refrescando a memória, Clark Kent, repórter do jornal O Planeta Diário é o alter ego do azulão.
Portanto, esse Superman não é o Superman, mas sim o filho do Superman, que também usa o codinome Superman. A criação de Jerry Siegel e Joe Shuster em 1938 não tem nada a ver com isso. A não ser a paternidade. Compreendido?
Nessa de ouvir o galo cantar e não saber aonde, muita gente imbuída de seus podres poderes de guardiões da moral e bons costumes, saiu por aí descendo a lenha (banhada com kryptonita) no Homem de Aço.
Uma tremenda bola fora
Alguns casos foram mais notórios, como o do jogador de vôlei Maurício de Souza. Em postagem nada sutil, escreveu: “A é só um desenho, não é nada demais. Vai nessa que vai ver onde vamos parar…”.
O jogador acabou vendo mesmo. Depois desse comentário homofóbico (não foi o primeiro), teve seu contrato com o Minas Tênis Clube rescindido.
Exemplo vem de casa
Reação diametralmente oposta teve seu homófono um bocadinho mais conhecido, o quadrinista e empresário Mauricio de Sousa.
Do alto dos seus oitenta e seis anos, questionado sobre a polêmica, Mauricio afirmou pretender incluir na Turma da Mônica (possivelmente a versão Jovem) um personagem gay, para estimular a tolerância e diversidade entre o público.
O cartunista, de quem poderia se esperar um perfil conservador devido à idade, não tem estes planos por moda ou autopromoção: um de seus filhos, Mauro (um dos cérebros criativos da empresa) é assumidamente gay. Isso nunca foi tabu na família ou escondido do público.
Manda quem pode, obedece quem tem juízo
Tentar ditar o que deve ou não deve ser lido nos quadrinhos não é novidade: uma tremenda caça às bruxas ocorreu entre as décadas de 1950 e 1970, quando a pressão de setores da sociedade, somada a interesses da classe política dos Estados Unidos, obrigaram as principais editoras – sobretudo Marvel e DC Comics – a criar o Comic Code Authority, um órgão independente de regulamentação e censura prévia.
A principal motivação para a criação do CCA foi a publicação do livro A Sedução do Inocente, do médico alemão Fredric Wertham. Nele, o psiquiatra explica detalhadamente o mal que se escondia por trás de cada página e como os quadrinhos levam à delinquência, ao homossexualismo e outras barbáries.
Fonte: vozes da minha cabeça
O livro fez enorme sucesso na época, e não é necessário dizer que encontrou eco nos setores mais conservadores da família tradicional estadunidense. Como também é desnecessário dizer que as teorias de Wertham se baseiam muito mais em suas convicções e preconceitos que em estudos propriamente ditos, como se soube décadas depois.
Essa iniciativa respingou em meio mundo. Por aqui, as principais casas publicadoras de super-heróis e congêneres – notadamente, Abril, EBAL, RGE e Vecchi – promoveram artifício similar. Fazia-se o possível para contentar autoridades civis, eclesiásticas e militares.
No entanto, quase ao mesmo tempo em que o Comic Code Authority caiu em desuso por lá, a versão brasileira também evaporou.
Muita vontade de aparecer
Mais recentemente, em 2019, tivemos a tentativa pífia – seria cômica se não fosse trágica – do ex-prefeito do Rio de Janeiro censurar a exposição e a venda de um álbum em quadrinhos dos X-Men, intitulado A Cruzada das Crianças. Nele, alguns dos mutantes vivem um romance homossexual.
Cabe ressaltar aqui que A Cruzada das Crianças, apesar de ter crianças no título, não é uma obra dirigida ao público infantil. E sim para jovens e adultos.
A motivação do ex-prefeito era contentar certos setores da sociedade e principalmente fiéis de sua igreja, para depois posar como defensor da moral. O feitiço virou contra o feiticeiro: a editora e a organização da Bienal do Livro do Rio de Janeiro conseguiram reverter a decisão da Justiça (por repetidas vezes) e a HQ vendeu como água.
Outro detalhe, não menos importante: as histórias dos mutantes das séries dos X-Men vai muito além de qualquer pancadaria. São essencialmente sobre aceitação e tolerância. Coisa que parte do público parece realmente não entender.
E se você acha que essa loucura promovida pelos fiscais da vida alheia é só aqui na Terra Brasilis, acredite: não é muito diferente lá fora. Os artistas responsáveis pela HQ do Superman em questão, John Timms (desenho) e Tom Taylor (roteiro) têm sofrido ameaças e recebem proteção da Polícia de Los Angeles.
Pelo visto, tolerância e sabedoria são superpoderes para poucos.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.