Tá faltando uma nota, filho
Era assim, olhando para o alto, que ouvia meu Analfabeto, Velho e Sábio Pai em sua sanfona. Procurava os seres em estradinhas iluminadas. Jamais os vi pelos olhos que veem, apenas pelos da alma, que veem muito mais. Punha-me sentado no chão, submisso, captado, agrilhoado naqueles movimentos hipnóticos de dedos que iam e vinham nas teclas, para cima e para baixo.
Tico Tico no Fubá, Abismo de Rosas, a Quinta de Chopin... ele chegava do trabalho no qual seus dedos penavam na empunhadura do serrote ou da colher de pedreiro por horas a fio e simplesmente começava a dedilhar a sanfona. Na época, isso não me surpreendia; anos mais tarde, comecei a me perguntar como era que dedos grossos e calejados como aqueles dançavam tão suaves e delicados pelo campo mágico das teclas do acordeão.
Naqueles dias eu sabia como. Eram, em verdade, aqueles seres das estradinhas que moravam na sanfona de meu pai. Enquanto ele a abria e fechava, os seres iluminados escapavam e ganhavam o espaço, de onde desciam com seus sorrisos tão iluminados quanto os olhos, os olhos de meu Velho Pai e os meus próprios. Era lá dentro que eles alimentavam a própria sede de paz para poder espalhar depois, quando a sanfona chorava sensível as notas das canções e eles começavam a descer pelas estradas.
Só eu sei o quanto me doeu quando a sabedoria me invadiu e então deixei de saber que eles moravam lá.
Era sempre por volta do pôr do sol ...
... que eu ia para a sacada de minha casa esperar que ele chegasse do trabalho. Via uma capanguinha, em que carregava sua marmita, fazendo a esquina. Ela própria parecia vir dançando já sob efeito de seus passos. Eu saía correndo, ele me via, começava a correr também e era sempre debaixo de uma grande paineira que nos encontrávamos. Sempre. A pouco mais de dois metros dele, eu saltava confiante.
Para mim, nada era mais certo no mundo que ser apanhado no ar por seus braços cansados da labuta séria do trabalho. Claro... eu nem pensava nisso. Imaginei isso muito mais tarde. De qualquer maneira, se eu tivesse heróis que voassem, seriam eles que eu imitava quando saltava. Minha impressão era que eu deslizava no ar por quilômetros e quilômetros até chegar em seu peito, onde me aparava, apoiava e segurava firme.
Eu tinha um mundo ali dentro daquele abraço e um deus atrás daquele sorriso. Ali me aconchegava e era transportado para casa, pouco menos de cem metros dali.
Depois dos cumprimentos à família, ele ia pro banho e eu pro chão do quarto esperar pelo momento especial em que uma sanfona virtuose saísse de uma caixa sobre o guarda-roupa. Minhas veias já começavam a pulsar no ritmo das canções que eu sabia que ele ia tocar. Nada mais havia ali além de um acordeão e era o único elemento do ambiente até que ele chegasse. Quando chegasse, seriam então dois em um.
Meu Velho Pai nunca me falou, mas eu sabia que eu era a plateia mais importante que teve em toda sua vida. Houvera tocado em festas de fazendas pelos interiores de S. Paulo, de onde viera com sua teimosia contra a vida dura. Mas o jeito que preparava o acordeão e depois o tocava me dizia que eu era o que ele precisava ao fim de um dia longo e árduo.
Ele e minha Gorda e Sábia Mãe fizeram sete cidadãos. E cidadãos no mais puro significado do termo; fui o último. Meus irmãos já trabalhavam e tinham idade para a própria realidade. Dessa forma, era a mim que sobrava a honra e alegria de vê-lo tocar sanfona todos os dias.
Saudade do Matão...
...era sua peça predileta e tornou-se a minha também. Podia tocar centenas de canções, mas sua plateia sempre pedia aquela. Às primeiras notas, meu coração já disparava. E o dele também, ao ritmo da valsinha tranquila. Ele parecia voltar às fazendas sob aquelas notas; eu, ao céu, de onde eu sinto ter vindo a contar pelos pais que tive.
Havia muitos elos entre mim e ele e aquela canção era o mais forte. Compassos firmes propunham admiração plena. A maneira como ele tocava essa música era diferente. Era como se se despojasse das saudades do homem que gostaria de ter sido para seus filhos e se revestisse da certeza de que conseguiu sê-lo.
Meus pais moravam em casa contígua à de minha irmã. Meu velho foi um homem e tanto. Aos 96 anos, morreu como viveu: pleno de saúde. Sinto que fizera uma espécie de acordo com a vida: eu a vivo tranquila e honradamente enquanto você estiver em mim; você se vai de mim tranquila e honradamente quando chegar o momento. Meu Velho Pai simplesmente fechou os olhos numa tarde de sexta-feira.
Dois anos antes disso, o Alzheimer começou a se intrometer em nossas vidas. Tentou e tentou, mas não conseguiu, pelo menos não de todo. E não... estas minhas lembranças não são conjunto de tristeza e melancolia por causa do mal. É antes a dignificação do poder da música sobre duas pessoas.
Meu Velho Pai lutou contra o Alzheimer com a mesma ganância por vida que tivera durante todos os seus anos. Começou com um esquecimentozinho aqui e ali, uma paradinha de percepção de realidade mais adiante. Como terapia, eu pedi que me ensinasse a tocar sanfona.
Em verdade, essa ideia já estava em mim havia muito tempo, mas me faltava ele, o tempo. Eu o visitava nos fins de semana, quando ou tirava sua barba ou cortava seu cabelo ou ficávamos horas em conversas. E passei a aproveitar para aprender a tocar e a forçá-lo a atividades diferentes, como me ensinar. Disse que não ia ensinar ninguém, mas vi o brilho em seus olhos. Era quase tão intenso por poder ensinar quanto o dos meus por aprender.
Nunca vi um homem tão impaciente, como sempre o foi, tão paciente em ensinar algo a seu filho. Sua voz ganhava mais suavidade nas explicações, seu cheiro se tornava mais iminente ao abaixar e mostrar as notas para mim. Mostrou-me a sequência inicial de Saudade do Matão várias vezes, identificando cada nota pelo nome.
Eu tinha ouvido aquela canção milhares de vezes nos meus já 47 anos de vida até aquele momento. Assimilaria a sequência de notas com facilidade. E assimilei. Entretanto, sempre que eu executava, ele pedia para eu repetir. Depois, dizia:
- Tá faltando uma nota, filho.
Eu dizia que não. Mostrava a ele, repetindo exatamente as notas. Mas ele teimava que estava faltando. Eu tornava a mostrar, ele tornava a teimar. Acompanhava com golpes de dedos no ar cada tecla que eu acionava, como se regesse uma orquestra, sempre sorrindo. No ar, fazia o certo, mas ele dizia que estava faltando uma nota quando eu tocava.
Três fins de semana com essa ladainha de “tá faltando uma nota”, percebi que a teimosia era o avanço do Alzheimer. Então, parei de também teimar com ele. Quando dizia que estava faltando uma nota, eu simplesmente concordava. Ele podia estar longe, no quintal, no banheiro, na sala; tão logo eu executasse as notas, vinha com seus passinhos de bebê e mostrava como deveria ser. Ou seja, a mesmíssima sequência que eu acabara de fazer soar.
Chamei minha irmã e conversei com ela. “O Alzheimer avança”. Expliquei o que acontecia. Ela concordou comigo: não faltava uma nota, meu Velho Pai é que achava que sim. Tantas vezes quantas fossem as que eu tocasse seriam as que ele me corrigiria. Não havia jeito. Meu Velho e Sábio Pai estava sendo vencido.
Durante todos os fins de semana dos quatro meses seguintes, a história se repetiu. Era um sábado em que a garoa brincava com o calor de um outono lindo que ele resolveu a coisa toda. Depois de eu tocar a sequência inicial da canção, vi-o vindo pelo corredor da casa com seu arrastar suave de chinelos. Eu já esperava que ele disse que estava faltando uma nota. Mas não fez isso.
Sentou-se ao meu lado, posicionou os dedos no teclado e pediu para que colocasse meus dedos sobre os dele. Ele tangeu cada tecla com a maestria de sempre, com a técnica de sempre, com a sabedoria superior de sempre. Então, aconteceu algo em mim. Pareceu-me ter visto num átimo todos os seres iluminados com as mãos na cintura, rindo, ainda na estradinha cósmica, me chacoteando.
Somente então eu percebi que realmente faltava uma nota. Uma bendita nota escondida não sei onde no total de minha petulância de achar que ele se deixaria engalfinhar pelo Alzheimer. Não... não, senhor! Não o Analfabeto, Velho e Sábio Lázaro. Ele poderia estar com passos lentos, esquecido, mas música era com ele e com ninguém mais.
Finalmente, eu me dei conta de que estava faltando uma nota.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.