Tabu!
Foto: Maru Lombardo/Unsplash
Há priscas eras, quando o Ultraje a Rigor era uma banda comandada por um sujeito que acreditávamos ser revolucionário e progressista, falar de sexo na televisão era um tremendo tabu.
Era tão tabu que até a palavra tabu, quando usada numa reportagem ou mencionada em algum programa de grande apelo popular, causava um certo frisson. Ou seja, até falar tabu era tabu.
O pecado mora ao lado
Na minha adolescência, o máximo de sexo que se tinha acesso na TV aberta era a famosa Sala Especial da TV Record de São Paulo. Mas não era de bom tom para uma menina pudica admitir que dava umas espiadelas na tal sessão.
Mas vamos lá… o máximo que se via ali era uma ou outra atriz “pagando peitinho” aqui e acolá. No quesito “meninos” (que efetivamente era o mais interessante sob meu ponto de vista, e isso é o que importa), a tal Sala Especial deixava muito, mas muito a desejar. Ok, eu compreendo. Este tipo de filme era feito para o público masculino. Chato.
Ainda assim, continuávamos sob a égide de um governo militar, que por mais flexibilizado estivesse, ainda tinha uma censura fortíssima, personificada pela Dona Solange e sua tesourinha implacável.
Muitas vezes, no momento em que a coisa esquentava, quando você achava que aquilo ia acontecer, cortava-se para outro personagem atravessando a rua ou tirando meleca do nariz. Não raro, perdendo-se o sentido completo.
Ventos da mudança
Para adolescentes curiosas e curiosos, os hormônios em polvorosa, era um balde de água fria. Uma época decepcionante. Mas era o que tínhamos.
Então, vieram as Diretas Já. E as diretas não vieram. Veio a eleição. Tancredo ganhou; Tancredo morreu; Sarney assumiu. Dona Solange não ficou muito mais tempo no cargo, e aos poucos, a tal censura foi abrandando, até liberar geral. Não havia nem a “classificação indicativa” dos dias atuais.
Vou dar um exemplo: sabe quando você precisa entrar numa piscina gelada, e coloca primeiro o dedinho do pé pra sentir, antes de se jogar com tudo? Foi mais ou menos assim que as emissoras de TV agiram na ocasião.
Um susto e tanto
Lembro de estar assistindo Bronco, humorístico da Band, protagonizado pelo querido Ronald Golias, quando a então atriz Sandra Annenberg soltou um sonoro “merda!” em cena. Deselegante.
Minha mãe, minha irmã e eu nos entreolhamos; as três branquelas ficaram ruborizadas, simultaneamente. Era uma clara evidência que as mudanças estavam chegando. Os ventos da liberdade sopravam nas telas, mesmo com um leve cheirinho de cocô.
Claro que aquela abertura seria suficiente para passar mais do que palavrões, naquela segunda metade dos anos 1980. Ainda que apertadinha, a brecha foi suficiente para a entrada das cenas de sexo.
Liberando GERAL
Repentinamente, Globo e Manchete incluíram ceninhas esparsas de sexo em seus folhetins, numa frequência que só foi aumentando. Claro, porque com frequência fica mais gostoso.
Cenas de beijo que não passariam anteriormente de um inocente selinho, quiçá algo um bocadinho mais íntimo, evoluíam para beijos cada vez mais tórridos, não raro evoluindo para cenas de intimidade com uma boa dose de ação entre quatro paredes, sobre lençóis e com ausência de vestuário.
Virou festa. Dando de dez a zero (ou sete a um, para ficar mais atual) na velha Sala Especial. Para uma garota adolescente, quase adulta, dava pra assistir sem constrangimentos. Era só novela. Sem tabu incluído.
Revolucionando comportamentos
Mesmo que no caso não houvesse cenas de sexo, bom lembrar que nessa época aconteceu a criação do primeiro “trisal” da TV brasileira. Sério. Afinal, o que eram Zelda Scott, Juba e Lula?
Em pleno horário nobre da Globo, Armação Ilimitada era dirigido ao público jovem, alcançando tremenda repercussão junto ao público infantil.
Para completar, o trisal tinha um filho adotivo (Bacana) e a melhor amiga, Ronalda Cristina, teve um bebê com um alienígena. Mais inclusivo e interracial que isso, não era possível.
Voltando as intimidades: dali em diante, foi um festival unissex de pernas, coxas, bundinhas, costas, peitos, nus frontais (sim, de ambos os sexos). No início, tudo muito hétero, mas não tardou para todas as variáveis presentes na equação dar as caras (e corpos, cada vez mais esculturais e bronzeados) na telinha.
Sim, acreditem, a TV aberta foi muito liberal naqueles dias distantes.
Para todos os gostos
Na década de 1990, teve de tudo para quem quis. E quem quis, se divertiu. Não posso esquecer as memoráveis transmissões dos bailes de Carnaval de Bandeirantes e Manchete, que batiam a audiência dos milionários desfiles oficiais na avenida.
Estes bailes apresentaram ao telespectador comum cenas que ruborizariam as atrizes dos filmes da Sala Especial. Ao vivo, e de verdade. Mão naquilo, aquilo na mão, aquilo naquilo e deixo o restante para sua fértil e safadinha imaginação.
Sou de uma geração que assistiu ao vivo, em cores e sem a menor formalidade a lendária cena “fecha na Prochaska”. Mais que isso, sei até quem é Cristina Prochaska, apresentadora e repórter, que acabou tendo seu nome imortalizado nesse equívoco inesquecível.
Nas novelas, dá lhe sexo. Sexo com amor, sem amor, com carinho, com força… houveram mesmo cenas de sexo coletivo e até estupros. No meu ponto de vista, algo totalmente incômodo, de mau gosto e dispensável.
Riso sexy
Outra coisa: programas humorísticos foram muito além do “merda” da Sandra Annenberg; era impossível não ver uma superexposição de corpos femininos seminus, passando pelos tradicionais Viva o Gordo/Veja o Gordo, Chico Anysio Show, Cabaré do Barata, A Praça é Nossa e até Os Trapalhões!
O programa de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias não explorava o sexo como assunto, mas garotas com pouca roupa eram onipresentes em muitos esquetes. O público principal do quarteto eram crianças… mas os pais das crianças também importavam muito na audiência. Não é à toa que Didi tinha entre seus bordões o clássico “muié é bicho bom”.
A grande exceção foi o controverso TV Pirata. Controverso, porque não havia meio termo: o público amava e odiava o programa na mesma intensidade.
Se no TV Pirata houvesse cena de nudez, era apenas como crítica ao momento da televisão brasileira. Como no dia em que satirizaram sem pudor o concorrente A Praça é Nossa.
Essa postura certamente contribuiu para a extinção do programa, sumariamente massacrado no Ibope, em confronto direto com Pantanal, novela que usou, abusou, reciclou e tripudiou de toda sorte de cenas de sexo e nudez, ainda que encaixadas no roteiro.
Variando posições
Mas não acabou. Uma escalada vertiginosa de cenas do tipo ocorreria nos anos seguintes. Só para continuar no mesmo canal, lembremos que as novelas Xica da Silva, Mandacaru e mesmo a desastrosa Brida, suas últimas produções, traziam fartas cenas de cunho sexual.
A mesmíssima Manchete ainda nos traria uma versão “caliente” do tradicional Cinemania, atração sobre a sétima arte comandada por Wilson Cunha. Com o título Cinemania 2: Mais Quente Ainda, o programa dava picos no Ibope das madrugadas. O assunto, imutável, era sexo no cinema. Muito sexo.
De madrugada é mais gostoso?
As madrugadas, claro, não seriam mais as mesmas. A Band apresentou com sucesso retumbante seu Cine Privê e o Strip Show; a CNT/Gazeta vinha com o Bate Papo no Banheiro (com a eterna garota de Ipanema, Helô Pinheiro), o Madrugada Sexy e o inesquecível Papo Gostoso, onde a apresentadora deitada em uma cama, lia e comentava cartinhas impublicáveis dos telespectadores.
Havia outro expoente, exibido um pouco mais cedo, quase em horário nobre, que também marcou muita gente. Eu particularmente achava meio constrangedor, cafona até. Era o Cocktail, conduzido pelo showman Luiz Carlos Miele, nos finais de noite do SBT.
O programa simulava jogos de cassino, sem muito sucesso. Mas a cada erro (ou acerto) dos participantes, uma das “garotas tim-tim” que compunham o elenco (eram pouco mais que parte do cenário, as pobrezinhas) tiravam alguma peça de roupa. Baseado em um programa italiano, fez bastante sucesso, mas não teve vida longa.
Pouca roupa, no meio da tarde
Ainda na década de 1990, a Band trazia uma personagem que fazia muito barulho usando pouca roupa. Talvez você não conheça pelo nome, Suzana Alves. Mas o apelido, Tiazinha, marcou época.
Com máscara e um visual dominatrix, a garota surgiu em um quadro do H, programa de Luciano Huck. Aplicava castigos (depilatórios) nos garotos que participavam do quadro e erravam. Apesar da dor, acredito que muito moleque ali errou de propósito.
A Tiazinha ainda estrelou uma série de ficção científica, onde era um tipo de… super heroína. Depois que os programas foram extintos, chegou a se transformar em cantora gospel. Isso sim é identidade secreta.
Na esteira de Tiazinha, a Band também teve a Feiticeira, outra personagem em trajes íntimos, que talvez tenha ficado mais conhecida por uma frase de um comercial que protagonizou: “não é feitiçaria, é tecnologia”.
Já no SBT, o game show Fantasia fez sucesso, com jogos bastante discutíveis. Mas não importava. O que valia mesmo era a presença de Carla Perez, Jackeline Petkovic, Debora Rodrigues, Amanda Françozo e até mesmo Izabella Camargo no início de carreira. Sempre em trajes sumários. Pra dizer o mínimo.
Em outra pegada, a MTV Brasil cravou muitos pontos no assunto, já na década seguinte. Diversos programas abordaram o tema, mas sem nenhuma exploração do nu, ou sexo pelo sexo. Seu maior expoente foi o Ponto Pê, com Penélope Nova.
Enfim, não é segredo pra ninguém que a superexposição da nudez feminina e do sexo só apareceu na TV para satisfazer o lado voyeur e machista de uma imensa parte da audiência.
Não dá para se cravar o motivo, mas no último par de décadas, houve um “encaretamento” do público, que repentinamente tornou-se tão refratário e pudico quanto uma novela bíblica da Record TV.
Crime e castigo
Sexo na atualidade choca muito mais que nos anos 1980 e 1990. Foi gerado um imenso burburinho sobre a novela/macrossérie Verdades Secretas II, não somente pelo bafafá que culminou na saída da atriz Camila Queiroz.
Temendo uma polêmica negativa, a novela já nasceu projetada para que seu conteúdo mais “pesado” sequer fosse exibido pela TV aberta, sendo exclusivo dos assinantes do streaming Globoplay.
Aí, quem quis ver, pagou pra ver e viu, sem que houvesse a grita de quem acharia aquilo uma indecência, deformidade, inadequado para a família cristã, etc. Sem reclamações.
Verdades Secretas II teve o mérito de entregar a maior, melhor e mais bem feita cena de sexo soft-porn-lesbian-chic entre as protagonistas Agatha Moreira e a já citada Camila Queiroz. Aquela que teve desavenças com o RH.
Uma cena verdadeiramente bem dirigida, bem interpretada, e bem (uau!) quente.
Por outro lado, para quebrar o clímax, nos entregou a seguir a cena mais broxante (olha o spoiler aí, gente) com o personagem de Rodrigo Lombardi ressuscitando, sabe-se lá como e de onde (no melhor estilo imorrível do Exterminador do Futuro).
Apenas para assassinar a personagem de Camila Queiroz (seria a mando de algum funcionário do RH?). Um final de história com um claro justiçamento. A pobre personagem mal recuperara o fôlego do encontro quentíssimo com sua parceira, e a história se dirigia à um “felizes para sempre”.
O assassinato covarde, no melhor estilo “relacionamento de mulher com mulher não pode dar certo”, deve ter causado prazer inenarrável em certa parcela conservadora da audiência.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.