Tecnologia blockchain e a soberania nacional
Condições para desenvolvimento da tecnologia blockchain no Brasil
O desenvolvimento científico e reflexivo demanda curiosidade. Antes de entender algo, é necessário saber que não entende. No que diz respeito a tecnologia blockchain tal dinâmica não é diferente, chega mais longe e vai mais rápido quem está mais disposto a aprender.
No contexto de um país, tal disposição se manifesta nos dispositivos do arranjo institucional que permitem a sociedade civil, o mercado e a academia fazer experimentos na busca por soluções de curto, médio e longo prazo.
Porém, a presença no arranjo institucional é resultado, e não premissa, de um processo que se inicia com a curiosidade entre representantes e líderes do Estado, do mercado e da elite intelectual do país.
No texto ‘Filosofia Política, Liberdade Produtiva e Tecnologia Blockchain’, publicado na Coluna ANPOF descrevi um tipo de liberdade, associada à produção, que fomenta a inovação. Tal liberdade, que assume diferentes formas, é condição para passar da prática produtiva disponível em dado momento da história para uma prática mais sofisticada.
No entanto, conforme nos alerta Roberto Mangabeira Unger em seu livro ‘A Economia do Conhecimento’ (2018), a prática produtiva mais avançada em cada época não se torna imediatamente disponível de forma ampla, mas frequentemente é objeto de uma vanguarda insular.
Ou seja, é comum que tal liberdade esteja disponível apenas a pequenos grupos de indivíduos dotados de recursos para o seu desenvolvimento.
O custo e a oportunidade da ruptura com o status quo
A velocidade e a profundidade nas quais um país consegue romper o confinamento das práticas produtivas mais avançadas, determinam a posição que este país ocupa na corrida pela supremacia em determinada tecnologia.
Por exemplo, ao descentralizar a oferta de crédito, os EUA se puseram na vanguarda do empoderamento produtivo da classe média no mundo.
Enquanto isso, ao estender o conceito de open software para o hardware, a China pôde alavancar a inovação e aumentar a competitividade de suas empresas no mercado global de tecnologia doméstica. Cada país que assume o risco de romper este confinamento e disponibiliza as mais avançadas práticas de produção para sua população, assume o papel de vanguarda global em determinado aspecto.
Embora o principal aspecto deste confinamento se materialize na desigualdade econômica, existem aspectos que surgem e podem ser superados a nível local. Questões relacionadas à legislação, educação, cultura popular, corporativa e intelectual, podem ser respondidas no interior do arranjo institucional específico de cada país ou região.
No Brasil, a falta de curiosidade institucional do Estado e do mercado, faz com que este confinamento seja rompido apenas por jovens dotados de recursos e corajosos o suficiente para arriscar seu tempo, dinheiro e reputação em experimentos na tecnologia blockchain.
Talvez o título de experimento mais disruptivo atualmente possa ser conferido à iniciativa do Banco da Maré de desenvolver uma Bolsa de Valores, dentro de uma rede blockchain, voltada para iniciativas de impacto social.
O dever de casa
No caso brasileiro, a primeira condição para este rompimento concerne ao Estado, e diz respeito à manifestação da curiosidade institucional.
Enquanto o mercado tem absorvido parte do desenvolvimento de tal tecnologia, no Estado o aproveitamento se limita à debates internos dos órgãos policiais e fiscais, enquanto entre os representantes eleitos sobram axiomas e falta curiosidade.
O primeiro passo para romper esse status quo é constituir grupos de trabalho em cada uma das casas legislativas, em cada um dos ministérios, no BC e na Presidência da República para elaborar um documento que sinalize à sociedade o interesse institucional no debate.
Tal sinal deve servir como um chamado à elaboração teórica (principalmente por parte da academia) para articular o potencial de tal tecnologia aos desafios e oportunidades que o Brasil possui atualmente.
Cumprido este primeiro passo, o Estado deverá mensurar a disponibilidade das ferramentas básicas para o desenvolvimento de aplicações dentro da tecnologia blockchain. A partir desta avaliação, organizações do Estado e do mercado poderão articular uma resposta à demanda de tais ferramentas de forma a não permitir que a desigualdade característica do nosso país torne inviável esse experimento.
Felizmente, tais ferramentas resumem-se a formação técnica e dispositivos com capacidade de processamento já disponíveis nos mais simples smartphones utilizados pela maioria dos brasileiros.
O terceiro passo, é o provimento de estabilidade e segurança jurídica para que cidadãos, desenvolvedores, empreendedores e investidores possam se dedicar ao experimentalismo nesta área.
O risco da inércia
Devemos notar que esta falta de curiosidade institucional têm deslocado o estresse institucional do legislativo para os órgãos de proteção da lei e da ordem. Isso ocorre pois o vácuo legislativo ao mesmo tempo que gera receio para o cidadão honesto, gera também oportunidade aos criminosos.
Tais condições adquirem urgência à medida que o Brasil, embora concentre uma das maiores populações de usuários de internet no mundo, tem papel tímido na corrida global pelo domínio da tecnologia blockchain.
Mais precisamente, a nível de aproveitamento institucional, ficamos atrás de países como a Etiópia que hoje já otimizou seu sistema educacional (reduzindo custos, agilizando processos e diminuindo fraudes) com esta tecnologia.
O fato de termos uma população tão ativa na internet torna o país imediatamente exposto às inovações, e quando falamos de um tipo de inovação que transforma radicalmente a relação com o dinheiro, sem o devido cuidado, tal exposição se torna um risco à gestão do câmbio e à soberania nacional.
O Real hoje é uma das moedas mais fragilizadas do mundo, e a fuga de capitais é uma realidade cruel para a economia nacional, se o arranjo institucional brasileiro permanecer à deriva no que diz respeito à tecnologia blockchain é possível que este seja o menor dos problemas que iremos enfrentar nos próximos anos.
Este artigo foi escrito por Dr. Marcelo A. Silva e publicado originalmente em Prensa.li.