Televisão: Domingo é todo alegria?
Triste. Profundamente triste / Imagem: KoolShooters/Pexels
Em algum momento entre os anos 1980 e 1990, um estudo concluía: a música do Fantástico causava depressão.
Tentei encontrar este estudo e infelizmente não fui bem sucedida. Suponho que seja lenda urbana. Mas isto me fez debruçar sobre a programação de domingo da televisão aberta, e aí encontrei algo muito mais deprimente.
Agora é hora de alegria
Com exceção de filmes e programas esportivos (que eventualmente também são um tanto deprimentes) toda a grade de programação dominical da TV nacional é alicerçada sobre sofrimento, regada a lágrimas, escorada na humilhação. E não é de hoje.
Basta zapear. Alguns mais, alguns menos, todos os shows populares tendem a explorar com requintes de crueldade, disfarçados como histórias de superação, as mazelas de algum personagem ou grupo de personagens.
Pessoas que perderam tudo por alguma calamidade ou evento inesperado; pessoas separadas de suas famílias; pessoas buscando oportunidades melhores no trabalho ou na vida; pessoas que desejam ascender na pirâmide social. Gente tentando alcançar algo que se mostra inalcançável, ou ainda, quem procura recuperar bens materiais.
A televisão aberta aos domingos é um grande show de assistencialismo barato. Dor, humilhação e choro dão audiência. Consequentemente, rios de lágrimas desembocam numa foz de dinheiro. Muito dinheiro. Uma pororoca financeira que faz as turbinas da TV girar.
Vamos sorrir e cantar
Não há como esquecer programas como o do finado Gugu Liberato, invadindo casas de família menos abastadas (para dizer o mínimo), procurando o que encontrava e sobretudo o que não encontrava; que reformava casas humildes; os Dias de Princesa dos programas do Netinho de Paula; histórias de sofrimento alheio nos shows de Geraldo Luís, Rodrigo Faro, Eliana e Celso Portiolli.
Nem mesmo o clássico de todos os clássicos, o Programa Silvio Santos, muito mais focado no entretenimento, escapou da fórmula. Basta lembrar da Porta da Esperança, onde tudo (ou quase tudo) era alcançado através da benevolência do apresentador e de seus patrocinadores.
Mesmo o bem mais recente Jogo dos Pontinhos é um ritual onde Silvio Santos se diverte com a humildade das colegas de trabalho (na sua maioria, revendedoras da sua Jequiti) tentando responder alguma coisa que faça sentido e conseguir uns trocados, frente ao microfone mais poderoso (e popular) dos auditórios brasileiros.
Da vida não se leva nada
Silvio sabe (sempre soube) aproveitar as fraquezas e características do seu público. Melhor que ninguém. Construiu um império sobre a humildade alheia. E foi sábio ao se livrar dos problemas.
O primeiro, o CLAM, sistema de planos de saúde. Percebeu a tempo que ser proprietário de um serviço onde as pessoas podiam morrer não fariam bem à sua imagem, em médio prazo; e o Banco Panamericano, cuja maior fonte de renda era o crédito pessoal. Metido em uma fraude fiscal de proporções dantescas, ameaçou a saúde financeira e estrutural de todas as suas empresas. Silvio puxou para si a responsabilidade e livrou-se do abacaxi, antes que a coisa ficasse incontrolável.
Tem muita diversão pra família
Mesmo a Globo (onde Silvio Santos deu seus primeiros passos na conquista do público) não ficou livre da exploração da dor alheia. Pelo contrário.
Ao ser contratado no final dos anos 1980, o anárquico Faustão, vindo do não menos subversivo Perdidos na Noite, precisou se encaixar nas populares tardes de domingo. O que era o Arquivo Confidencial, senão uma fieira de lágrimas encharcando telas e auditório?
O novo titular do dia, Luciano Huck, vinha fazendo isso com segurança aos sábados no Caldeirão (o que lhe atiçou a ideia de tentar carreira política), e agora é mais um engrossando a fila de lamentações dominicais.
Coisa muito parecida faz Raul Gil, que embora muito mais conhecido pelas tardes de sábado, já ocupou horários aos domingos no final dos anos 1990. Sua tradicional Homenagem ao Artista é feita para levar às lágrimas o mais insensível dos seres. Já o Jogo do Banquinho é concebido para rir da burrice alheia.
Pro vovô, pra filha e o tiozão
Assim como eram as Videocassetadas, marca registrada do Domingão, já entrando naquele horário pré-Fantástico: um momento de descontração calcado no infortúnio do pai de família, da criança, da tia que bebeu todas no churrasco. Assim como a grama do vizinho é sempre mais verde, a desgraça do outro não nos afeta, e é motivo de riso fácil.
Perceba: a maioria dos envolvidos nas pequenas pataquadas registradas são pessoas humildes, muitos em festas e eventos sociais. Cada qual fazendo o possível para ter seu melhor momento, antes que algo se abatesse. E não por acaso, os patrocinadores deste quadro eram em sua maioria bancos e serviços de crédito pessoal.
Atrações de arrasar, o Domingão já está no ar!
Para fechar, outra constatação, bastante sintomática (adoro usar essa palavra): quanto mais delicada a situação econômica do país, mais estes programas carregam nas tintas. A tristeza é uma grande vendedora.
Vale aqui a máxima: quanto pior, melhor.
No final das contas, aquela história da música do Fantástico que causava depressão, porque nos lembrava que um agradável fim de semana está terminando e regressaremos ao enfadonho ciclo semanal de trabalho e estudo, era o menor dos males.
O restante do domingo em si é muito mais depressivo. E lucrativo.
Eu volto!
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.