Teresa Cristina tá no ar, tá Globeleza!
Teresa Cristina, fazendo história e derrubando preconceitos | Divulgação TV Globo
O mundo não será o mesmo depois da pandemia. A afirmação, correndo desde o início de 2020, não poderia estar mais certa. Não somos os mesmos, nem vivemos como nossos pais, nem como o Belchior. Estamos em uma nova realidade, para o bem e para o mal.
A nova realidade expôs nosso lado mais solidário, e também trouxe de volta velhos fantasmas, que julgávamos exorcizados. Mexendo também com eventos considerados culturalmente intocáveis, como nosso velho e bom Carnaval.
Lá vou eu, lá vou eu…
Marca registrada do brasileiro mundo afora, o tal festejo momesco, que se fôssemos um país minimamente mais sério já não teria ocorrido nos primeiros dias de 2020, foi cancelado em 2021. E não foi coisa de redes sociais. Pela primeira vez em séculos, não aconteceu mesmo. Por mais narizes torcidos que se manifestaram, a medida salvou milhares de vidas, no início do ano mais mortal da Covid-19.
Por mais vontade que o povo estivesse, o Carnaval de 2022 também foi cancelado. Ou melhor, suspenso. Ao que tudo indica, deverá ocorrer no mês de abril, se não houver nenhuma surpresa. Particularmente, acho que ainda não é hora, mas minha opinião não conta aqui.
Todas estas mudanças e cancelamentos, silenciaram aquele considerado o hino extraoficial da festa, o tema Globeleza. Que agora, bagunçando nossos cérebros e relógios biológicos, ressurge nas telas em um formato inédito.
Hoje a festa é na avenida…
O tema, criado em 1991 por Jorge Aragão e José Francisco Lattari, foi desenvolvido como atrativo a mais em plena guerra das transmissões carnavalescas protagonizada por Globo e Manchete. Essa história eu sei, porque estava lá, se embora do lado oposto do front.
A primeira versão do tema foi interpretada por Quinho, nome pelo qual é conhecido Melquisedeque Marins Marques, cujo nome por si já daria um samba-enredo. Dali para frente, outros intérpretes embalaram a música, com destaque para Neguinho da Beija Flor, sempre ilustrada pelas evoluções de uma legítima mulata Globeleza. Da carioquíssima Valéria Valenssa à paulistana Erika Moura, passando por uma versão digital em meados dos anos 2000, todas exaltaram o Carnaval da emissora.
Mas até agora, nunca se ouviu a tal Globeleza entoada por uma mulher.
Até agora.
A vez e a voz deste Carnaval fora de época será Teresa Cristina.
No Carnaval da Globo…
Sambista, natural do Rio de Janeiro, Teresa Cristina tem uma carreira prolífica. Gravou dezenove álbuns em vinte anos. Cravou uma marca inequívoca de pioneirismo nestes tempos pandêmicos: foi a primeira cantora brasileira a fazer um show no formato de live. Depois dela, o formato se multiplicou em todos os gêneros, para todos os públicos e para todas as telas. Até mesmo Roberto Carlos, um dos maiores símbolos da “imobilidade” de certas tradições nacionais, rendeu-se ao formato.
Portanto, nada mais natural ser Teresa Cristina a ter o mérito da primeira voz feminina a entoar o tema Globeleza. A intérprete, de 54 anos, surgiu no vídeo da emissora e nas redes sociais numa produção caprichada, mas muito diferente das versões anteriores, como convém aos tempos atuais.
Teresa surge sozinha em um estúdio de gravação, entoando a canção. Sem passistas, sem mulatas, sem porta-bandeiras, sem bateria. A escola de samba está presente apenas no áudio, numa versão poderosa que complementa a bela voz da cantora.
Feliz eu tou de bem com a vida…
E aqui nos cabe uma reflexão, depois de mais de três décadas de Globeleza. Falando sério, por quê só agora temos uma intérprete feminina puxando o tema?
Faltavam cantoras à altura? Nunca. Somos o país de Ivone Lara, Beth Carvalho e Leci Brandão, só pra ficar em três que poderiam facilmente ter defendido o tema. Então, este não é o motivo.
A composição não foi feita para, ou não funcionaria na voz de uma mulher? Besteira. É só ouvir o impacto da música na voz de Teresa Cristina.
A resposta, por incrível que possa parecer, é aquela famosa e incômoda palavrinha que atormenta a sociedade em várias camadas, em vários setores, todo dia: preconceito.
Mas no meio carnavalesco, tão inclusivo e diverso, tem lugar para preconceito? Parece absurdo. É absurdo. Mas tem. E nem preciso ir muito longe. Faça um teste: coloque no Google, Bing, ou no buscador de sua preferência a frase “principais sambistas brasileiras”. Vai lá. Eu espero.
Deixa o meu samba te levar…
Viu? A pesquisa retorna como se fosse um erro seu, direcionando para principais sambistas brasileiros. E desfila uma fieira que vai de Cartola, Adoniran, Paulinho da Viola e até Zeca Pagodinho. Todos dignos do título, mas olha o preconceito estrutural dando as caras. Numa das buscas apareceram mulheres lá em quinto ou sexto lugar. Mas uma lista só com mulheres, nada feito.
A própria Teresa Cristina publicou no seu canal oficial do YouTube um depoimento que diz tudo: “Essa ação da Globo me deixa feliz porque não fala só sobre minha situação, mas sobre todas as mulheres. O samba chegou no Rio de Janeiro pelas mãos de uma mulher, mas isso foi apagado com o tempo e sabemos muito pouco sobre ela”.
Ela, em questão, é Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como Tia Ciata. Em 1876, migrou de Santo Amaro da Purificação (BA), para a então capital brasileira. Iniciou na cidade a tradição das baianas quituteiras com seu visual típico. Entre outras coisas, Ciata tornou-se uma mãe-de-santo respeitada, e em seu terreiro, após as atividades religiosas, organizava junto aos participantes um pagode com violão, pandeiro e muito samba, regado a quitutes e outras guloseimas típicas.
Pra embalar a multidão…
Para medir o tamanho da influência de Tia Ciata no meio musical do Rio de Janeiro, por sua casa transitaram figuras lendárias, como Donga (responsável pelo primeiro samba gravado no país), Pixinguinha, Sinhô, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, entre outros que têm seu nome eternizado na história do samba e da música brasileira. Sua casa, na Praça Onze, era considerada a “capital” informal da Pequena África (região da cidade onde a maioria dos negros, alforriados e depois livres, se estabeleceu).
Entretanto, por ser mulher e negra, seu nome foi relegado a segundo plano, e com o tempo, praticamente desapareceu. Pois é, o tal preconceito vem de longe. Se quiser saber mais sobre a incrível história desta fundadora do samba, recomendo dar uma olhada no documentário Tia Ciata, das cineastas Mariana Campos e Raquel Beatriz, disponível gratuitamente no YouTube.
Na tela da TV, no meio deste povo…
Em entrevista ao G1, Teresa Cristina afirmou: "Ser a primeira mulher a gravar essa música é muito importante, não só pra mim, mas para todas as mulheres do samba”. E acrescentou: “Acho muito importante que a mulher volte a atuar no samba, em todos os setores, em todos os lugares. Esse protagonismo era dela (Tia Ciata). É pegar de volta o que já foi nosso”.
É um primeiro passo. Nas telas da principal mídia do país. Pode parecer pouco, mas a importância deste reconhecimento e transformação será medido nos próximos anos. Afinal, o mundo não será o mesmo depois da pandemia. Pode ser melhor.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.