Terror racial: quando a realidade assusta mais que a ficção
Imagem/reprodução: Prime Video/Amazon Original
Sou fã do gênero Terror. Não necessariamente filmes que dão sustos inesperados, os famosos jumpscares. Prefiro as narrativas que colocam o espectador em um ambiente de angústia e suspense, que passeiam pela linha tênue entre o medo ficcional e o medo real.
A propósito, há algo mais assustador do que a própria realidade? Costumo dizer que o que me causa arrepios não são estórias de fantasmas ou lugares assombrados, mas sim aquilo que pessoas reais são capazes de fazer. O terror material que vemos no cotidiano, nos noticiários, na vida que pulsa entre as desigualdades sociais.
Perto do racismo, por exemplo, zumbis ou monstros metamorfos são meros contos de fada. A maquinaria estrutural racista que oprime as populações negras em estados ocidentais, como os EUA e o Brasil, é pra mim mais assustadora e me aterroriza muito mais do que qualquer fantasma ou demônio.
Hoje, nesse textículo verborrágico, elenco três das séries mais assustadoras que assisti este ano, e que versam sobre aquilo que alguns especialistas chamam de terror racial. Estas três obras passaram pela direção de brilhantes profissionais negros: Misha Green, Little Marvin e Gerard McMurray.
O terror racial em Lovecraft Country, de Misha Green
Tio George, Letitia e Atticus em Lovecraft Country (Imagem/reprodução: HBO Max)
Os monstros e os feitiços são secundários aqui. O terror está, mesmo, no racismo.
O roteiro costura ao longo dos episódios (que vão e vem na história, sem qualquer comprometimento com a ordem cronológica) a trajetória de Atticus Black, veterano da Guerra da Coreia, que retorna aos EUA após o conflito e busca retomar sua vida civil. Em Chicago, ele e o tio, George Freeman, saem em busca do pai desaparecido de Atticus, Montrose, após receberem uma carta assinada por ele.
A estranha correspondência convidava Atticus a conhecer um suposto legado de sua família em Ardam, no Estado de Massachusetts. Ele e o tio, acompanhados de Letitia, fotógrafa habilidosa e amiga de infância de Atticus, rumam para o local, para averiguar.
Sobrevivendo a monstros e policiais racistas pelo caminho, os três chegam a uma mansão, posteriormente descobrindo que esta pertencia a uma seita racista chamada de Filhos de Adão, fundada por Titus Braithwhite, um comerciante escravagista. Enquanto são recebidos pelo líder da seita, Samuel Braithwhite, o tio George descobre que Atticus seria descendente do velho Titus (por meio do estupro de uma ancestral do jovem, prática deplorável comum ao ambiente escravagista colonial), e que eles planejam sacrificar o rapaz em um ritual.
A partir deste ponto, a trama acompanha Atticus e sua família numa luta sem trégua contra o grupo de magos, especialmente Christina Braithwite, a herdeira do clã.
Por mais que a trama envolva elementos mágicos e fantásticos, a tensão e o medo ficam a cargo da violência racial da sociedade norte-americana. Chicago é hostil com a população negra, e não raro isso aparece nos episódios em cenas de perseguição e linchamentos públicos.
Os fantasmas do racismo em Them, de Little Marvin
Capas de divulgação da série (Imagem/reprodução: Prime Video/Amazon Original)
As consequências materiais que o racismo pode trazer para a sociedade são inúmeras. Porém, e talvez este seja um aspecto negligenciado (ou mesmo ignorado por grande parte das pessoas), a consequência emocional e mental, individualmente falando, pode ser ainda mais destrutiva. É sobre isso que a série Them, da Amazon Prime, trata.
A narrativa acompanha a saga da família negra Emory em busca de um novo lar, saindo da Carolina do Norte, em 1953, onde as leis segregacionistas ainda estavam em vigência. Seu destino é Compton, na Califórnia.
As leis da qual nos referimos eram apelidadas à época de “Jim Crow” ou “leis de Jim Crow”, uma referência a um personagem da comédia norte-americana do século XIX, criado pelo artista Thomas D. Rice, que ridicularizava a população afro-americana por meio de estereótipos. Inclusive este mesmo Rice (conhecido em sua época como Daddy Rice) foi pioneiro no chamado “blackface”, humor racista que explorava a população negra como matéria de piada.
Estas leis davam conta da separação de negros e brancos em espaços públicos e privados, reservando de modo desigual serviços como educação, saúde, transporte, lazer, etc. Sempre, sem exceção, os afro americanos ficavam com a pior parte.
Retornando à série: uma vez em Compton, a família Emory vai descobrir que o sonho de um novo lar vai se tornar um pesadelo. O condomínio em que adquiriram a casa é predominantemente ocupado por famílias brancas hostis à presença de negros, com um histórico terrível de violência a famílias negras anteriores.
A partir daí, a realidade se mistura com a ilusão: a hostilidade, a violência e o medo alimentam os fantasmas particulares dos membros da família Emory, que os atormentam em diversos aspectos, como religiosidade, aceitação social e opressão estrutural.
Replay: quando o racismo tenta fechar todos os meios de saída
Cena do episódio Replay, da série The Twilight Zone (Imagem/reprodução: Prime Video/Amazon Original)
A temporada de 2019 de The Twilight Zone é impactante. Com produção do aclamado Jordan Peele (diretor de Corra! e Us), a série é uma continuação da versão clássica dos anos 1950, idealizada por Rod Serling, marcada pela narrativa que caminha pelo real e pelo ficcional, com uma crítica social astuta e perspicaz.
Todos os episódios são excelentes, mas Replay, o terceiro, dirigido por Gerard McMurray e escrito por Selwyn Seyfu Hinds, carrega em si uma profunda reflexão sobre o racismo estrutural na sociedade estadunidense.
Acompanhamos dois personagens principais: Nina Harrison, uma mulher negra independente que conseguiu sucesso na vida ao sair de casa por dissidências com sua família, e seu filho Dorian Harrison, um jovem às portas da Universidade. Eles estão em viagem, e Nina vai levar Dorian para a faculdade.
Meio sem querer, Nina descobre que a filmadora em suas mãos tem o poder de rebobinar não apenas a fita, mas o tempo. E este artifício vai ser fundamental ao longo do episódio, quando eles passam a ser perseguidos implacavelmente pelo oficial Christopher Lasky.
Seja qual for o caminho, seja qual for a atitude tomada, invariavelmente, mãe e filho eram sempre abordados pelo policial branco, e em todos os momentos, algo ruim acontecia ou a Nina ou a Dorian. Por mais que ela utilizasse a funcionalidade de voltar no tempo e tomasse outra decisão que mudasse os rumos das coisas, Lasky sempre aparecia, e algo ruim acontecia.
A narrativa, associada a elementos visuais, como a frase “black lives matter” em pôsteres e paredes, segue uma linha similar a do curta-metragem vencedor do óscar “Dois estranhos” (dirigido por Travon Free e Martin Desmond Roe). Nesta película, um jovem negro preso num looping temporal se vê perseguido por um policial branco. Como em Replay, não importa o que ele faça, da atitude mais violenta à mais pacífica, o jovem sempre é preso (ou morto) pelo policial.
A mensagem é clara: a população negra se vê, em muitos momentos, sem saída diante do racismo estrutural, e isso custa o futuro e a vida de vários jovens negros e negras.
De todo modo, das três obras citadas, Replay é a que melhor levanta a bandeira da resistência. Em suas mãos, Nina não tem apenas uma máquina do tempo, mas uma ferramenta para vencer o ciclo quase interminável do racismo.
Terror racial é entretenimento?
Jamais.
As narrativas elencadas neste texto não são mera ficção de fim de semana. Elas levantam discussões, apontam problemas, exibem as contradições do racismo estrutural e demonstram como a luta antirracista está longe de um fim.
Ao assisti-las, eu, homem branco, tenho arrepios. Nunca poderei sentir de fato o que os povos negros sentem sob uma estrutura opressora e excludente.
Misha Green, Little Marvin e Gerard McMurray usam suas habilidades narrativas para ilustrar o que anos de história de escravidão e violência racial fizeram com afrodescendentes.
Neste terror real, o demônio que assusta, e que deve ser combatido, é o racismo estrutural.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.