Teto de gastos: necessário, mas...
As famílias brasileiras têm um limite de gastos. O cidadão brasileiro precisa estar atento a seus gastos. As empresas brasileiras sem controle de gastos fecham portas. Em sociedades capitalistas, como a brasileira, essa preocupação é inerente aos entes físicos ou jurídicos minimamente responsáveis.
Entretanto, o ente “Governo Brasileiro” não era obrigado a se preocupar com gastos. Detinha poderes para assumir irresponsabilidades fiscais sem qualquer linha limite. Certamente, os problemas que essa liberdade causava eram absurdos, eram escorchantes, eram destruidores.
Com a promulgação da “PEC do Teto” (veja mais abaixo), os governos foram obrigados a respeitar limites fiscais como qualquer outro ente da sociedade. Na prática, não podem gastar além do que foi gasto no ano anterior corrigido pela inflação.
As estrelas do show de Teto de Gastos
Para compreender bem a importância do conceito de “Teto de Gastos”, é necessário conhecer duas despesas públicas relevantes. Caso você, leitor, não saiba, despesas obrigatórias são as definidas por Legislação vigente. Trata-se daquelas das quais nenhum governo pode abrir mão, como previdência, seguro desemprego, assistência social, salários de servidores etc.
Já despesas discricionárias representam gastos sobre os quais os governos detêm algum poder de destinação, de orientação, de gestão. Nesse caso, podem ou não aumentar ou diminuir o volume despendido. Essa característica, por natureza, levava muita pressão parlamentar e social, fazendo que esse tipo de despesa se torne alvo de malabarismos orçamentários dos mais diversos.
O Brasil de antes do Teto de Gastos
O governo da época, na gestão Temer, concordava que era preciso dispor de algum mecanismo legal para reter os gastos públicos. Não havia patamar além do instituído pela lei anterior, a Lei da Responsabilidade Fiscal; entretanto, a fraqueza dessa lei permitia o tal malabarismo.
O Tesouro Nacional, juntamente com o IBGE, divulgou dados alarmantes naquele momento. Entre 1997 e 2015, os gastos federais evoluíram 864%, saindo de 133 bilhões para mais de 1,15 trilhão. Em contrapartida, a inflação foi pouco mais de 300%.
A linha imaginária desses dados se mostra bem ascendente quando se confrontam gastos e inflação: os gastos cresceram quase três vezes mais. Afinal, não havia exatamente o instrumento sobre o qual se discute hoje: um teto de gastos. As leis de então não apenas permitiam como incentivavam esse desnível.
Olhos parcos e impeachment
Havia certo desinteresse natural por parte do Congresso e do Governo das décadas anteriores. Além de vantagens políticas, o desempenho da economia dos anos anteriores, a partir de 2000, fez aumentar a arrecadação federal. Com isso, os olhos estavam voltados a outros horizontes.
Governos em via de encerramento e com possibilidades de não se reeleger simplesmente aumentavam gastos a bel-prazer. Com isso, as novas equipes assumiam dívidas de governos anteriores, em especial se fossem rivais políticos.
O problema é que o bom desempenho econômico anterior deu lugar a desempenho pífio. A arrecadação diminuiu bastante. A transferência de dívida de um governo para outro tornou- se insustentável. Assim, as equipes da Economia do governo de Dilma Roussef buscaram meios para aumentar a entrada de dinheiro por meio de aumento de alguns impostos.
A saída forçada de Dilma levou outras mentes para a equipe econômica a partir de indicação de Temer. Dessa maneira, o tiro de Dilma encontrou outro alvo: o teto de gastos.
O Brasil de depois do Teto de Gastos
Os limites para a liberdade de gastos foram impostos em 2017 por meio da Proposta de Emenda Constitucional - PEC nº 95, do ano anterior. Com ela, o Congresso buscou alinhar em equilíbrio a entrada e a saída de recursos, de forma que as despesas obedeçam desde então os limites criados pelos índices de inflação.
Dessa maneira, o avanço da dívida pública federal estaria sob controle. Pelo menos em teoria, pois, de lá para cá, houve muitas tentativas de “furo do teto” por parte de autoridades com interesses dos mais confusos. E escusos.
É o que está acontecendo no momento atual da economia brasileira, conforme você, leitor, vê ao longo deste artigo.
As regras
Os mecanismos do conceito de “Teto de Gastos” podem ser mais bem avaliados no site do Senado Nacional. Eles impõem diversas normas à conduta do Governo na área da Economia. Como sempre, as discussões sobre o tema foram acaloradas e ganharam espaço na mídia.
Tudo ocorreu no governo Temer, cujas equipes aproveitaram o ambiente político que, na época, era adequado. Afinal, o descontrole fiscal estava se tornando um dos mais evidentes pilares de descontentamento geral.
Em resumo, porém, pode-se observar o seguinte a partir da PED 95:
A força da PEC teria vigência já desde o ano seguinte, 2017, com abrangência de 20 anos podendo ser discutida em 2027
De início, a despesa primária de 2016 daria o “start”, seria a base, incluindo-se valores não pagos em anos anteriores
Para tanto, haveria correção do valor total em 7,2%, percentual da inflação acumulada no período anterior
A partir de 2018, a inflação acumulada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA dos doze meses anteriores restringiria o valor das despesas (o conhecido “teto de gasto”)
Por questões práticas, a força da PEC não atingia alguns setores de suma importância para manutenção da estrutura social:
Recursos da União para estados e municípios
Gastos com eleições
Verbas destinadas ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica - Fundeb e à valorização dos profissionais da Educação Básica
Por outro lado, as áreas da Saúde e Educação teriam tratativas especiais baseadas na “PEC do Teto”, como ficou conhecida a iniciativa governamental. Ambas teriam percentuais fixos de recursos: 15% e 18% respectivamente.
As expectativas perante a PEC do Teto
Além das diretrizes acima, a PEC chega ao salário mínimo. O cálculo do reajuste deixou de permitir percentuais superiores ao da inflação do ano corrente.
Entretanto, as esferas governamentais também sofrem alguns revezes. Após aprovação, qualquer desrespeito às normas sujeita o órgão a sanções jurídicas: interrupção no fluxo de benefícios ou subsídios a partir de esferas superiores; não podem reajustar salários de servidores; são desautorizados a contratar e organizar concursos públicos; além de outros entraves.
Como o teto de gastos impõe limites aos governos e o orçamento é composto majoritariamente por despesas obrigatórias, que podem crescer acima da inflação, a agenda de reformas econômicas passou a ganhar ainda mais relevância.
O Brasil atual do Teto de Gastos
Entre o ano de entrada em vigor, 2017, e o ano anterior ao ano perdido da pandemia, 2019, a PEC do Teto de Gasto acabou gerando bons dividendos literalmente. De certa maneira, a imagem do Brasil no exterior melhorou também em razão dos efeitos do equilíbrio fiscal.
Esse horizonte é o visto tanto por analistas que sempre defenderam a medida como por alguns que a deploravam antes. Qualquer cidadão preocupado com os rumos do país busca informações consistentes sobre o teto de gastos; sendo investidor, a preocupação se intensifica. Se for investidor estrangeiro, não tem tempo para se preocupar: simplesmente leva seu dinheiro para outro local, como é o caso do próprio Ministro da Economia, Paulo Guedes.
André Perfeito é economista da Necton Investimentos. Para ele, “toda forma de burlar o teto de gastos é extremamente mal vista pelo mercado. Dívida tem de se pagar, é como se o governo não honrasse um título público”, conforme disse à revista Veja recentemente.
E a pandemia chegou...
O mundo enfrentou “apenas sério” golpe na Economia com o advento da pandemia; sociedades mal estruturadas economicamente enfrentaram “seriíssimos”. O Brasil, em especial. Apesar disso, alguns relatórios internacionais importantes apontam que o país não está entre os que mais ruíram no período crítico.
Essa informação parece conflitante e até contraditória e será alvo de novo artigo em breve. Contudo, diversas ações esporádicas, pontuais, diminuíram o impacto econômico consideravelmente. Iniciativas do Congresso e dos governantes estaduais, como aprovação do Orçamento de Guerra e manutenção das atividades básicas, tornaram a pandemia menos desgraçante se se considerar muitos países emergentes.
Assim, a pressão sobre as despesas discricionárias mencionadas acima aumentou; os gastos aumentaram; a inflação está nas alturas; o dólar evoluiu a olhos vistos. Somente o Auxílio Emergencial consumiu mais de R$ 50 bilhões mensais.
E a pandemia ainda está em curso. Com isso, o cenário de aumento de gastos é o mais desenhado por especialistas da área. Os governos das três esferas vão precisar de magia para não estourar o teto até 2026, ano em que a PEC 95 volta para a mesa de discussão.
… e o ano eleitoral também
A popularidade do governo federal está abalada por uma série de razões não pertinente a este artigo. Portanto, é preciso que o eleitorado seja “acariciado” para que os índices de rejeição cheguem a patamar razoável em 2022, ano de eleição.
É sabido que o comportamento da economia é um dos itens que exercem maior pressão sobre o eleitorado. Falta voto quando falta dinheiro. Não à toa, o governo pretende não apenas manter o Auxílio Emergencial. Pretende aumentar o valor para 600 reais.
Para tanto, precisaria “furar o teto” de gastos. Se o fizer, pode receber sanções políticas que envolvem tanto as pessoas físicas das equipes do governo quanto a pessoa jurídica.
E, também não à toa, Paulo Guedes busca meios desesperadamente para fazer o Congresso elevar o nível do teto atual. Quiçá anulá-lo!
Imagem de capa - Instituto Humanitas Unisinos.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.