Tevê no final de ano: o dia da marmota
"São sempre as mesmas emoções, bicho" / Reprodução: TV Globo
No filme Feitiço do Tempo (Groundhog Day, de 1993), o diretor Harold Ramis nos leva a conhecer a história de Phil, um arrogante homem do tempo de uma estação de TV local, inexplicavelmente condenado a passar seus dias em um loop infinito, preso no tal “dia da marmota” do título original, que é um evento folclórico (real) do interior dos Estados Unidos.
Se você nunca assistiu a este clássico da comédia/ficção, recomendo que o faça. Inclusive pretendo abordar esse assunto aqui na Prensa num futuro próximo.
Mas isto levou-me a pensar: já reparou que a TV brasileira (e boa parte da TV mundial) entra em um “dia da marmota” quando chegamos no final do ano?
Sempre é a mesma coisa: grande parte dos programas de linha apresenta edições especiais de final de ano, pouco antes de entrar em indefectíveis reprises durante seus períodos de férias, geralmente estendidos até março.
De uns meses para cá, por inspiração da tevê dos Estados Unidos, é que começamos a experimentar nossas mid-seasons, período em que a televisão norte-americana testa novos formatos e programas para verificar seu desempenho junto à audiência, se valeria a pena incluí-los na programação regular.
O Bom Velhinho is back
E então é Natal… (como diria a música da Simone). Papai Noel começa a dar as caras nos programas e comerciais, a partir do início de novembro. Em alguns anos, o bom velhinho já coloca suas vestes em meados de outubro, para impulsionar as vendas; mas é a partir da segunda quinzena de dezembro que São Nicolau se torna onipresente: do Mais Você ao Programa do Ratinho, do Jornal Nacional ao Show do Esporte, passando pelo Mega Senha e desembocando no Quintal da Cultura. Lá estará ele, ladeado pelos seus asseclas, liderados pelo velho e fiel Rudolph, a rena do nariz vermelho, que marcou toda uma geração que assistia à programação de especiais do SBT.
Assim como é certo que algum apresentador de perfil mais sério aparece no vídeo com o gorrinho de Papai Noel, para assombro da audiência.
Mais tradicional que espumante barato na mesa
Neste período, pipocam especiais musicais dos mais variados gêneros, do rock à música clássica, passando pelo axé, pop, sertanejo e MPB.
E como esquecer o maior e mais persistente representante desta categoria, o Roberto Carlos Especial? Mais tradicional que uva passa ou constrangimento de parentes durante a ceia, mais infalível que música natalina cantada pela Simone em lojas, o Roberto Carlos Especial é o nosso maior expoente do nosso “dia da marmota”.
De 1974 para cá, só não foi apresentado em 1999, quando Roberto perdeu a esposa, Maria Rita. Motivo mais que justificado. O programa, ideia de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, é sem dúvida a maior tradição da história da televisão brasileira.
Oráculos e tempestades
Programas vespertinos são tomados por uma enxurrada de videntes, oráculos, adivinhos, sensitivos, todos trazendo previsões bombásticas envolvendo celebridades, o homem comum, políticos e desastres naturais. E em sua grande maioria, falhando miseravelmente. Os poucos acertos podem ser atribuídos à lógica histórica ou ao simples chute.
Como falamos em enxurrada, é bem neste período que Datena, Bacci e outros olham para o céu. Não para dar graças, mas para discorrer e mostrar as infalíveis tempestades (as águas de dezembro abrindo o verão), convertidas em uma torrente de audiência e uma inundação de lucros.
Enchentes lembram outra atração que jamais falta na TV brasileira, e sempre dá as caras na imensa maioria dos canais: as retrospectivas! É a coroação anual dos departamentos de jornalismo, e o suplício de editores de texto e imagem: retrospectivas são um produto “vivo”, costumam ter mudanças de última hora até o momento de sua exibição. Tive experiências inesquecíveis neste sentido.
Nesse período, emissoras costumam dar pistas sobre as atrações do ano vindouro, mesmo muitas vezes escondendo o parte mais importante do jogo: não é charme, em muitos casos é indefinição, mesmo. Sempre há muito em jogo, nesta parte do planejamento.
De algum tempo para cá também é tempo de burburinho sobre quem serão os participantes do BBB, que invariavelmente chega em janeiro.
Festa da firma
E coladinho com o Natal, chegam também as festas encenadas das emissoras de tevê. Os maiores expoentes: amigos secretos do Fantástico (onde você dá um tênis importado e corre o risco de ganhar um abajur mequetrefe) e o Família Record.
Ao menos nestas festas, os presentes e presenteados têm mudado com o correr dos anos. Neste ainda tivemos momentos de suspense, com a indefinição da participação da atriz Camila Queiroz, que dias antes fora defenestrada pelo RH da Globo. Foram as verdades secretas do amigo secreto.
Cinema na TV aberta é um produto cada vez mais raro, mas ainda assim costumamos ser contemplados com filmes e desenhos animados temáticos. Até porque sai mais barato para as emissoras, que nesta época tentam deixar o caixa enxuto.
Ok, nunca tivemos nada tão marcante quanto a tal rena, mas ainda surgem aqueles filmes bíblicos sobre o nascimento de Jesus, sempre meio deslocados, já que o Natal é sabidamente a festa do Papai Noel.
Para o ano passar correndo
E não há véspera de Ano Novo sem a tradicional (e bota tradicional nisso) Corrida Internacional de São Silvestre. A prova, criada pela Fundação Cásper Líbero, e originalmente exclusiva da TV Gazeta de São Paulo, foi incorporada ao calendário oficial da Globo há quase quatro décadas, mudou de horário várias vezes (era uma corrida noturna) e ganhou proporções ainda maiores.
O roteiro é mais ou menos o mesmo: milhares de competidores, desde atletas de ponta a cidadãos comuns e personagens folclóricos, correm quilômetros pelas ruas paulistanas até chegar, esbaforidos, na frente do edifício Gazeta. E quase sempre quem ganha é um queniano que corre descalço.
Diretamente dos estúdios do… Morumbi?
E o Show da Virada? Há anos, espera-se sempre a atração comandada pelo Faustão, e aqui finalmente teremos novidades, que talvez interrompam nosso “dia da marmota”. Vai ter Show da Virada. Mas não vai ter Faustão. Ou melhor, vai ter Faustão sim, fazendo a virada, porém na Band! Será a primeira apresentação pública na programação de sua nova emissora, longe dos reclames do plim-plim!
Quem sabe, com a quebra dessa tradição, não começamos a vislumbrar um novo dia, de um novo tempo, que começou… ih, não. Tinha esquecido dessa!
Lá e de volta outra vez
Só que ainda não acabou: vamos fazer um exercício de futurologia? Aposto que os telejornais de 1 de janeiro de 2022 trarão as seguintes notícias:
imagens da virada de ano em todo o mundo (sempre começando pela Austrália, passando por aquela bola esquisita que desce a acende o letreiro em Nova York);
o primeiro bebê nascido em 2022, e eventualmente o último nascido em 2021;
o pessoal que pulou sete ondinhas (mesmo com a pandemia) e agora tá de ressaca caído na areia de Copacabana;
casais se abraçando e gritando “feliz ano novo” para a câmera, visivelmente alcoolizados;
celebridades deixando mensagens de Feliz Ano Novo;
presidente, governadores e prefeitos de férias em alguma praia;
As ruas de São Paulo vazias;
Brasília vazia;
O pessoal que ficou parado na descida da serra para chegar a qualquer praia e passou a virada do ano comemorando com estranhos na rodovia;
alguma reflexão sobre as eleições, e claro, alguma coisa referente à Copa do Mundo no Qatar, já que é ano de competição;
Algum show que aconteceu em alguma praia;
Dicas para aproveitar as sobras da ceia.
Pode apostar. Possivelmente teremos algumas alterações pontuais pandêmicas, mas no geral, não sai desse roteiro.
Cozinhando o galo
Havia outra tradição, que será quebrada este ano. É sabido que o ano só começa depois do Carnaval, e Carnaval que se preze só começava assim que o repórter Francisco José, recém demitido da Globo, entrava num link ao vivo anunciando o Galo da Madrugada no Recife. Pode ser que o ciclo tenha se quebrado.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.