Thanks Mr. Bowie!
Quando era ainda um molecote, ele levou uma surra que o deixou quase cego de um olho e ficou alguns meses acamado. Talvez tenha sido durante esse tempo de dor e raiva ou resignação que ele tenha construído lugares mais agradáveis para viver aquele seu resto de infância de um jeito mais fantasioso e seguro.
(O mundo pode ser um lugar terrívelpara todos nós, mas é pior para com as crianças e os idosos).
Então, ele deve ter começado ali – de forma inconsciente, penso – a erigir o que seria sua pedra de toque, aquilo que nos define de uma maneira genuína e verdadeiramente plena e essa definição é tão perfeita porque nasce também da dor, da humildade que somos forçados a adquirir nesses momentos; da capacidade que brota em nossa alma de simplesmente aceitar: o que quer que a vida traga, aceitar (e isso como se sabe não é lá muito fácil). Depois ele disse que seu olho ferido adquiriu uma cor diferente daquela que tinha antes e isso é bem bizarro (como a vida é) e então, ele foi crescendo e agregando em si, aquilo tudo que existe e que está fora dos padrões, dos sistemas, das margens e fronteiras sociais, afinal, não fora lá, no ‘mundinho’ esquematizado de uma escola que ele sofrera a violência que o faria quase perder a visão de um dos olhos?
Isso foi há tantos, tantos anos; e ele, esse cara; como pessoa do seu tempo (mas inexplicavelmente, sempre à frente dele) só poderia se tornar mesmo um artista porque apenas as criaturas que vivem da arte (seja ela de que tipo que for, mas somente quando feita de maneira genuína) conseguem ultrapassar a rotineira banalidade das horas e dos dias às quais estamos todos submetidos.
Daí eu fico pensando: será que foi por isso que ele criou o Ziggy? Será que ele pensou em ser um extraterrestre para que assim pudesse se libertar de todas as formalizações sociais que aprisionam a todos – todos: desde um aborígene australiano a um homem de negócios sul-americano – em limitadas visões mundanas?
Um homem de gelo (derretido)
Relembrando uma velha entrevista dada por ele em 1972 (e republicada anos atrás pela Rolling Stone) ele disse que se sentia como um “homem de gelo, meio alienado andando por aí” e isso não deixa de ser algo estranho quando nos lembramos da efervescência hippie da época. Em 1987, ele disse estar mais alegre do que jamais fora (isso dito no final da tal década perdida, a era dark e sombria e o pior: cheia de yuppies também soou contraditório, mas ser contraditório não traduzia sua essência?).
Já em 1999 ele disse não se achar de modo algum, inteligente (a humildade...a humildade) e se lembrou de um sonho que teve aos quatro anos de idade; nesse ano ele disse ainda que tinha o hábito de transcrever seus sonhos (eu sempre pensei que havia muito de mundos sonhados em suas canções e me lembro do clipe de ashes to ashes e daqueles cenários oníricos meio angustiantes mas carregados de lirismo).
Nos anos seguintes, ele foi falando algo aqui e ali, sempre dando a impressão de que não estava ‘ali’ de fato, sempre parecendo olhar as coisas como se estivesse em um farol ou numa nave acima delas.
O fato é que ele, nesses perfis feitos em revistas de música ou generalistas era mostrado sempre de um jeito endeusado e oco, como se ele fosse um ídolo, um ícone ou algo assim e é claro que, para muitos, ele é isso mesmo mas, penso que vê-lo assim não lhe fazia justiça, na verdade, o reduzia e o tornava apenas mais um artista como outro qualquer.
Tardes ruins
Enfim, tudo o que a indústria musical construiu em torno dele e claro, com sua adesão total, mas também com sua lucidez– afinal ele se erigiu em cima de seus defeitos e dores e ‘tardes ruins’ como disse também na mesma entrevista de 1972 – tudo o que ele permitiu que fosse vendido de si mesmo para a massacrante indústria midiática, no entanto, não o tornou uma personagem falseada e vazia como aconteceu com tantos outros que surgiram quando ele também surgia.
Esse cara conseguiu, de um jeito que merece apreço, ser o rosto de um tempo que vem, desde o fim da década de 1960, se deglutindo, se consumindo; como se aquela enigmática esfinge propusesse a si mesma, incessantemente, mais e mais charadas nunca esclarecidas, impossíveis de ser esclarecidas, enlouquecedoras até.
Pois ele, com seu olho estilizado de extraterrestre engraçado, louco ou os dois, do tipo que viria a terra não para nos humilhar ou algo do tipo, e sim, para nos trazer algum alento; pois ele conseguiu permanecer e se tornar quase que um símbolo do quanto a música – e o rock, mais precisamente, porque é o que toca esse meu coraçãozinho pós-moderno e farto de tanta música ruim – consegue – e eu realmente acredito nisso – tornar a vida suportável e essa é uma qualidade deveras rara e preciosa nesses nossos tempos globalizatórios que transformam mediocridades em genialidades e passam por cima das identidades – culturais, sociais e outras mais – como se fossem uns tratores (ditos) civilizatórios.
Aquele olho do Bowie — e suas poesias musicadas e seus personagens inverossímeis — se tornaram atemporais e por isso, fui obrigada a ressuscitar esse texto um tanto antigo como forma de homenageá-lo. Eu quis escrever como se tivesse de novo 16 anos de idade e fosse uma adolescente do interior que ao ouvir ‘Let’s dance’ achou que a vida era boa. É por isso que ‘digo’: obrigada David Bowie por ter tornado meus dias oitentistas (e os demais) poeticamente suportáveis, maravilhosamente belos e incrivelmente leves.
Este artigo foi escrito por Ankara Faulkner e publicado originalmente em Prensa.li.