The Sandman - Por que a adaptação é tão boa?
A Invasão Britânica foi um evento dos quadrinhos, em meados dos anos 80, que trouxe uma geração nova de escritores para o "lado de cá da Lagoa", como dizem os brits, e essa invasão transformou o mercado. Alan Moore e seus Watchmen apareceram. E é claro, Neil Gaiman, então só um jovem "gótico londrino", e seus sonhos, também.
Três décadas depois de lançar, pela DC Comics, sua obra mais amada, Sandman, Gaiman se une à Netflix, e estréia a série que adapta os primeiros arcos da saga onírica do quase-deus Morpheus. São 10 episódios com produção luxuosa, elenco refinado e uma pitada de modernidade muito bem vinda.
Gaiman, agora um renomado escritor sério, nunca escondeu que passou décadas impedindo adaptações ruins de Sandman de serem feitas. E, talvez, o maior acerto da série nova seja empregá-lo como produtor e dar total liberdade para o autor aprovar ou não os rumos da produção.
O sucesso gigante não deixa mistério: a adaptação acertou. Mas acertou em tudo?
Coleção de personagens
Um feiticeiro em luto decide aprisionar a Morte em pessoa. Seu feitiço quase dá certo, só errou o sequestrado: ao invés de invocar a Ceifadora, prende seu irmão mais novo, Sonho.
O sujeito, uma espécie de deus que governa o lugar para onde todos nós vamos quando dormimos, passa então mais de um século aprisionado. Quando finalmente se liberta, precisa botar ordem em seu reino e começa suas tarefas indo atrás de seus equipamentos, roubados pelo mago e espalhados por lugares, cidades e dimensões.
O primeiro dos desafios que a série trouxe foi a escalação de seu protagonista. Além do aspecto de fantasia e horror e da trajetória complexa da trama nas HQs, Sonho é um personagem difícil. Em parte, é um emo emburrado. Por outro lado, é uma entidade ultra-poderosa, orgulhoso e impiedoso. Muitos de seus fãs mais assíduos acham que ele é meio babaca, e parte de sua trajetória é conseguir ser, bem... menos babaca.
Tom Sturridge, que participou de vários filmes (incluindo o excelente Longe Deste Insensato Mundo) traz ao oniromante mais inocência e menos fúria do que o esperado, mas encanta com a sinceridade e a voz ribombeante. Sem falar que ele ficou idêntico à sua contraparte das HQs.
Praticamente todos os outros personagens encontraram algum tipo de "resistência" por parte dos fãs. Numa escolha acertada, a produção decidiu não ligar muito para "quem era homem ou mulher" nas HQs, ou para a etnia dos personagens originais (afinal, muitos deles não são nem humanos).
Obviamente, "fãs" ficariam furiosos com algumas trocas. Naturalmente, quanto mais ignorados, melhor.
Kirby Howell-Baptiste encarnou a Morte, e conseguiu dar camadas de empatia e doçura a uma das personagens mais emblemáticas da saga. O mesmo aconteceu com Vivienne Acheampong, que vive a assistente-bibliotecária de Morpheus, outra escolha mega acertada. Completando a família de Sandman temos Mason Alexander Park como Desejo (que ficou espetacular), e uma pequena aparição de Desespero, nas feições de Donna Preston.
O Desejo de Park rouba a cena tanto quanto Boyd Hollbrook, que interpreta o pesadelo Coríntio, uma das criaturas mágicas que está à solta comendo gente pelos olhos (literalmente). Assim como Gwendoline Christie, que empresta sua altura e imponência às feições suaves de Lúcifer em pessoa.
Outro que chama a atenção é o saudoso professor Lupin, David Thewlis, que traz à vida o vilão John Dee enquanto brincando de deus com alguns pobres mortais. O episódio estrelado por ele, o quinto, é uma obra de filosofia e horror puro, com um embate final tão memorável quanto no original.
Alterações Sutis e Profundas
Parte do que a série faz de melhor é transportar a história de 1989 (a época em que a HQ foi lançada) para os dias de hoje. O senso de modernidade paira na série inteira, o que cria um clima de fantasia assim como de atualidade.
Algo que não mudou foi o progressivismo. Sandman sempre foi casa para homossexuais, trans e marginalizados (um dos motivos de seu longevo sucesso) e a série acerta em cheio ao colocar esses elementos em vários de seus personagens, até em alguns que não os tinham na HQ (nunca vimos o Coríntio em um relacionamento... amoroso?).
E em nenhum momento a série quer que você note isso. Ela não fica apontando e falando "veja só como somos prafrentex." Os personagens simplesmente têm a permissão de "ser", como querem ser e como podem ser. Isso dá um respiro saudável a elementos que muitas vezes estão lá, na cultura Pop, só para bater cartão. É evidente a mão de Gaiman nesse aspecto.
As mudanças mais fatuais são sutis e muito bem-vindas. No clássico "Jogo mais Antigo", colocar o antagonismo completamente na figura de Lúcifer é uma daquelas sacadas que equiparam a qualidade da série à da HQ original, assim como unir a história de Hob Gadling (Ferdinand Kingsley) ao episódio em que conhecemos a Morte, de longe um dos mais emotivos.
Também chama a atenção a ausência das referências mais diretas ao Universo da DC Comics. Sandman é uma história que se passa no mesmo universo de Batman, Superman e Lanterna-Verde. Porém, a presença dos primos de collant de Morpheus foi totalmente eliminada, o que melhora muito o ambiente da série. Se víssemos gente de capa voando por aí, teríamos uma expectativa completamente errada do que The Sandman é capaz de entregar.
O fim do sonho é só o começo
A segunda metade da temporada é focada num arco mais longo, como uma aventura mais contínua onde Sandman precisa evitar um desastre no universo, enquanto salva uma garota chamada Rose (Vanesu Samunyai) tanto do Coríntio quanto de si mesma.
E terminamos com um tremendo sentimento de "quero mais". Mesmo que a parte final do que a Netflix lançou não carregue o impacto dos primeiros episódios, o resultado é inovador e revigorante.
Um sucesso como este (no momento, Sandman é a série #1 da Netflix em 89 países) certamente receberá uma segunda temporada, e os momentos finais já deixam claro que entraremos na Estação das Brumas, uma saga que coloca nas mãos de Morpheus a chave para resolver um problema gigante entre o céu e o inferno (e vários outros lugares).
The Sandman é um pequeno milagre que conseguiu se manter fiel a uma história antiga, sem precisar modernizar tantos aspectos. O que só mostra a capacidade de Neil Gaiman de criar situações, personagens e intrigas perpétuas. Deveria virar uma checklist de como adaptar material amado por muitos.
Quem aí quer voltar agora mesmo para o Sonhar, e continuar a saga de um dos mais intrigantes "heróis" das HQs?