Tinder Blind Date: quem vê coração não vê cara
Tinder Blind Date associa postura tradicional com comportamento tecnológico (Imagem - Pexels)
A novidade mais recente do aplicativo Tinder, o Tinder Blind Date, acaba de introduzir outro termo num velho ditado associado a romances: coragem. Além disso, ainda causou verdadeiro revertério na ideia de namoro. A estratégia de funcionamento dessa versão está ao longo deste artigo.
Vocês, leitoras e leitores, ainda ouvem falar nas palavras namorar e namoro. Ainda. Aos poucos, elas, seu significado gramatical e assimilação do conceito em si vão sendo substituídos por ficar e ficada.
Há décadas, havia outro conceito: o de casamento arranjado por pais. Então, nem o velho ditado “quem vê cara não vê coração” era aplicável, pois os parceiros se viam somente no dia do casamento.
De início, o aplicativo Tinder enterrou de vez o ditado; depois, o renovou, revertendo a ideia e alterando a posição dos objetos (diretos, gramática) nele. Antes os usuários do aplicativo viam a “cara” primeiro por meio de fotos para depois eventualmente verem “coração” em troca de mensagens; agora, nem coração nem cara.
Ou melhor, vai ser na base de “com a cara e a coragem”.
Tinder Blind Date põe o “antes” no “agora”
Logo abaixo, vocês, leitores, têm uma espécie de descritivo da evolução do conceito de namoro. Há décadas, a grande maioria das jovens conhecia seu “quase-marido” na hora do “sim”. Raramente, uma família permitia fuga dessa tradição familiar - em verdade, imposição social.
Se o aplicativo Tinder Blind Date for observado por esse prisma, é possível vê-lo como retorno àquele “antes”. Claro, guardadas as devidas proporções. Diferentemente do “antes”, o “agora” permite maior força de decisão das mulheres. Ainda não é a intensidade da força ideal, mas já é maior.
“Cabra-cega” do Tinder Blind Date
Os jogos infantis antigos tinham uma brincadeira em grupo chamada “cabra-cega”. Crianças dos interiores das cidades mais afastadas dos grandes centros ainda participam dela.
Um dos participantes é vendado; os restantes fazem barulho e se movimentam ao redor. O vendado precisa agarrar e reconhecer um deles; este então se torna a “cabra-cega”, tomando o lugar de quem o reconheceu. Essa diversão nasceu e foi aplicada por muito tempo nos palácios da Idade Média.
Ainda com as proporções devidamente consideradas, é o que o Tinder Blind Date faz. A diferença é que o presencial foi substituído pelo virtual. Os participantes não se veem. Aqueles que decidem por essa versão do aplicativo não têm nem mesmo fotos ou áudios de quem vai “agarrar”.
Como é o Tinder Blind Date
De certa maneira, a simplicidade e aplicabilidade da nova ferramenta do Tinder são os pontos atrativos. Ainda que se baseie em tecnologia, a estratégia conduz a mente ao encontro da mais simples necessidade dos seres vivos: relacionar-se.
Veja como vai ser:
Você faz login e vai para a seção Explorar (recursos como Vibes, Hot Takes, Swipe Night e Fast Chat já estão lá)
Você opta pelo novo sistema de conhecimento social
Responde a diversas perguntas triviais, aparentemente sem qualquer objetivo específico. Trata-se do bom e velho “quebra-gelo”
As respostas e análise prévia de seu perfil levam o aplicativo a sugerir alguns participantes
Você escolhe a parceira ou parceiro
Iniciam bate-papo informal, inconsequente
O tempo de conversa é limitado por escolha de ambos
Os únicos detalhes conhecidos reciprocamente são as respostas dadas à série de perguntas acima
Ao fim do tempo pré-determinado, decidem se querem ou não se conhecer por imagens, áudios ou mesmo presencialmente
Se tudo correr bem, o aplicativo desbloqueia as imagens dos pretendentes
Não correndo bem, basta que um deles deslize a tela para a esquerda e nova sessão tem início
Experimento social
Há uma aresta psicossociológica envolvida na nova versão de relacionamentos do aplicativo. Ainda que a maioria dos usuários não tenha vivido a tradição “conheça-me para me querer”, o caráter de tradicionalismo se encaixa no que se ouviu dos pais ou avós. Isso é atraente.
Os participantes sentem que o retorno do domínio para tomada de decisão é bom. Mesmo que boa parte desse domínio esteja ainda na dependência da inteligência artificial do aplicativo. Afinal, é ele que indica participantes com pontos personais em comum.
De cardápio a Haniel
“Segundo Baym (2010), ao se criar um perfil em determinado aplicativo, o indivíduo não estaria se distanciando do mundo real, e sim, se autoconstruindo estrategicamente.”
A citação acima é encontrada no artigo monográfico “Análise sociológica do aplicativo Tinder e as formas de sociabilidade atreladas a seu uso”, escrito por Louise C. R. da Silva. Em análise fria, ela indica que parte dos profissionais de saúde mental e social não tinha opinião favorável sobre aplicativos de relacionamento.
Por contraponto, o mercado de consumidores de tecnologia elegeu o Tinder como apoio a suas inseguranças em relacionamentos. Entretanto, ainda que tenha sido sucesso imediato, os gestores principais da empresa estavam preocupados com a opinião geral. Esta percebia via - e ainda percebe - o aplicativo como “cardápio humano”.
Isto é, espaço virtual para exposição de corpos e egos à semelhança de zoológicos ou museus. Mais para o primeiro que para o segundo. Essa visão nascia do comportamento de vários usuários irresponsáveis. Dandara Barbosa escreveu sobre isso aqui na Prensa.
Dessa maneira, os gestores da empresa pretendem imprimir imagem de “cupido” ao lançarem o Tinder Blind Date. O panteão católico tem um anjo que cuida exclusivamente de aproximar protegidos enamorados: Haniel ou Anael.
A contar pelo cargo desse anjo - chefe-geral dos cupidos -, o Tinder pretende que o Blind Date seja muito mais que simples flecha.
De onde veio a ideia
Kyle Miller, vice-presidente de Inovação em Produto da empresa, informou recentemente em entrevistas sobre o nascimento da ideia: “a vida imita a arte ou vice-versa”. As equipes da empresa observaram o nível de expectativa em personagens de filmes e programas de TV.
Tudo o que se precisou fazer foi desenvolver meios para que a tecnologia oferecesse o mesmo nível - ou até maior - aos tinders. Conseguiram. “Vimos a emoção de encontros às cegas nos nossos personagens favoritos de filmes ou TV; quisemos recriar essa experiência para a geração de hoje com o recurso Blind Date”, Miller. “É realmente bom que conversas mostrem a personalidade de alguém [ou seja] sem os preconceitos que podem interferir a partir de fotos”, completou.
Contudo, as equipes de desenvolvedores Tinder quiseram inserir também o sentido de diversão. Por isso, criou as perguntas inconsequentes e alguns joguinhos para o tal “quebra-gelo”. Assim, as possibilidades de criação de conexão são ainda mais assertivas e intensas.
Do “às cega” até a cama
Já são longes os tempos em que o rubor no rosto feminino dizia algo sobre a personalidade. Ou escondia. Pressionada pela sociedade de então, a mulher era praticamente obrigada a se mostrar envergonhada ao falar de namoro. Até mesmo se envergonhava se não se envergonhasse.
O tempo e a Ciência com algumas descobertas ajudaram a libertar a mulher de uma infinidade de preconceitos. Ela e muitos homens torcem para que continuem a ajudar hoje e no futuro breve.
Veja abaixo alguns degraus da longa escada chamada “namoro” que a sociedade tem galgado. Em vários deles, empurrada pela própria mulher.
Há um século
O relacionamento já tinha avançado um pouco. Os parceiros já podiam se ver, mas somente após a mulher ser “exibida” (os pais preferiam dizer “apresentada”) à sociedade em bailes e outros eventos. Mesmo famílias não abastadas se esforçavam ao máximo para promover o “Baile dos 15 anos” da jovem, quando então os rapazes podiam admirá-la oficialmente.
A mulher - e o namoro - era tratada como deveria ser ainda hoje: intocável (mas, claro, somente se ela quiser).
Mais alguns anos, o chamado pretendente passou a ser autorizado a “pedir a moçoila em casamento”. E havia toda uma formalidade para a ocasião, quase um evento familiar.
Sendo aceito, podia frequentar o lar da futura esposa. Nem se cogitava possibilidade de não haver casamento; seria destruição da imagem impoluta da jovem.
Uma década a mais e os namorados saíram da sala em que eram vigiados por alguém da família. Contudo, foram da sala para o portão e ainda sob olhares atentos.
Há meio século
A pílula anticoncepcional já estava espalhada pelo planeta. Foi alívio físico para os casais e grande apoio psicológico para a libertação da mulher. Com isso, o namoro começou a ganhar contornos de intimidade mais intensa.
Além disso, o mundo conheceu nova forma de visão de vida: os hippies. Mais liberdade, menos conflitos pessoais, menos preconceito. Nesse cenário, as sociedades começaram a deixar a postura exigente, ultraconservadora, e a aceitar relações menos compromissadas.
Alguns anos mais tarde, dois fatores interferiram diretamente no comportamento amoroso dos jovens e de todos em geral. Um deles agiu de forma negativa; o outro, de maneira positiva (pelo menos na percepção dos enamorados):
Aids: que inseriu o sentido de “preocupação e dúvida’ nos relacionamentos
Preservativo: esse apoio a relacionamentos já existia desde o século anterior; mas foi a partir da descoberta do látex, nos anos 90, que tudo se tornou mais prático, menos custoso e mais prazeroso
Enfim, a ficada
Nesse tempo, a efemeridade das relações já estava embutida no comportamento e o universo virtual começou a fazer parte do cotidiano geral. Daí para sites de relacionamento foi um pulo simples.
A “ficada” tornou-se a base das escolhas de parceiros. A mulher mostrou-se mais senhora de si mesma, dona de seu próprio nariz, assumindo postura que antes era forçadamente restrita a homens.
Atualmente, a cama é o local de conhecimento mútuo, descoberta de personalidades, avaliação de postura e expressão de liberdade física e comportamental. Em especial das mulheres.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.