Tráfego aéreo: o voo dos eVTOL
O ser humano é um bicho insatisfeito por natureza. Mal inventou a roda, resolveu colocar uma plataforma em cima e chamar de “carro”. Mas empurrar aquela coisa com a família inteira, mais sogra, cachorro e papagaio (de neandertal), só pra passear no final de semana, dava muito trabalho.
Logo deduziu que adaptar um ou mais animais de tração como bois, cavalos ou burros, ficava bem mais fácil. Porém, como os cavalos não são nada burros, logo pediram mais e mais ração.
Nessa hora alguém teve a brilhante ideia de colocar um motor naquela coisa, que de “carro” tornou-se “automóvel”. Para felicidade dos cavalos e dos donos das empresas petrolíferas, já que os motores pediam mais e mais combustível.
No início, os automóveis causavam assombro, espanto e outros adjetivos exclamativos. Em pouco tempo, dominaram o solo. Ruas e estradas foram adaptadas ao reinado das bestas metálicas. O ser humano deixava aos poucos de ser o homo sapiens, para se tornar, além de menos sapiens, o homo automobilis. Tal qual o desenho clássico do Pateta.
Toda a gentileza sobre quatro rodas | Imagem: Walt Disney Pictures
Mas os problemas, que antes vinham a cavalo, vieram à bordo de potentes motores de 16 válvulas, com rodas de liga leve e um gosto peculiar para acessórios, como aquelas bolas de câmbio transparentes com um caranguejo dentro. Fora a poluição, ruas e estradas, agora chamadas “rodovias”, ficaram entupidas por automóveis. Quem diria, não é mesmo? O trânsito estacionou, tal qual o burro lá de cima, empacando na primeira esquina.
Acima de tudo
Um dia, alguém preso num engarrafamento quilométrico em seu carro conversível, talvez suplicando ajuda dos Céus, talvez desviando de algum passarinho com o sistema digestivo instável, olhou para cima. Então pensou: quem dera, como os passarinhos, ocupar esse espaço vazio com automóveis?
Certo, o espaço não estava tão vazio assim, pois aviões e helicópteros já zanzavam pelos céus há algum tempo. A ideia pode não ter nascido deste modo, mas já pululou na cabeça de muita gente: um carro voador. Pequeno como um automóvel, prático como um helicóptero.
Desde o final dos anos 1910, dezenas de tentativas foram feitas, nenhum resultado satisfatório e algumas tragédias incluídas no currículo. Mas com a tecnologia avançando, parece que finalmente vislumbramos alguns modelos com chance real para voar além da ficção científica.
Para cima e para baixo
Por curiosidade, o projeto mais avançado atualmente surgiu bem na terra do Pai da Aviação ou pelo menos o responsável por fazer o “mais pesado que o ar” decolar por meios próprios. Se ainda não ligou o nome à pessoa, falamos de Alberto Santos Dumont e claro, do Brasil.
Bom lembrar que os novos “carros voadores” não têm jeito de carro; alguns sequer rodas têm. Os chamados eVTOL, sigla bonitinha para Electric Vertical Take-Off and Landing, ou Decolagem e Pouso Vertical Elétrico, parecem mais drones com mania de grandeza. O principal expoente dessa nova linhagem é a brasileiríssima Eve, criação da Embraer.
A bela Eve em ação | Imagem: Embraer
Ocupando um espaço pouco maior que uma van, muito menor que um micro-ônibus, a Eve voa amparada por oito hélices em suas extremidades superiores, e mais duas hélices traseiras. É projetada para carregar quatro pessoas por vez e alguma bagagem, qual um táxi terrestre. Há também um modelo “cargueiro” em planejamento.
Com motor elétrico e zero emissão de poluentes, atraíram a atenção de diversas empresas de táxi aéreo e mesmo da aviação tradicional, como a Azul e a Gol, que pretendem explorar o segmento urbano já a partir de 2026, quando as primeiras unidades comerciais da Eve serão entregues.
As indústrias da Embraer têm trabalhado duro: quase 2 mil unidades da pequena aeronave foram encomendadas em várias partes do mundo. Vale ressaltar que a empresa baseada em São José dos Campos se mantém na liderança do desenvolvimento dos eVTOL, não apenas em relação a startups, caso da sueca Jetson Aero, cuja inspiração é óbvia (apesar de jurarem ser Blade Runner). Outras gigantes da aviação tradicional estão no páreo, como a norte-americana Boeing.
Para o alto e avante
Ok, muito bonito, mas de onde esses bichos decolarão, e principalmente, onde irão pousar em segurança? Imagina-se que não será no meio da rua, e muito menos usando a infraestrutura de aeroportos e heliportos tradicionais, ou estaríamos trocando seis por meia dúzia.
A Eve, e os eVTOL em geral terão infraestruturas próprias, chamadas “vertiportos”. A intenção é ter num futuro próximo diversas unidades regionais instaladas em grandes centros, mais ou menos como os atuais terminais de ônibus, possivelmente integrando-se aos terminais modais existentes.
Além dos vertiportos, os eVTOL precisarão de um sistema de tráfego aéreo independente – mas de algum modo integrado ao sistema atual, para evitar possíveis barbeiragens contra helicópteros e aviões. Supõe-se que num grande centro como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou Campinas, seja necessária a instalação de algumas torres de controle locais, que troquem informações entre si.
Na ponta dos dedos
E já que o assunto são caminhos e controle, uma coisa precisa ser explicada: não vá pensando que assim que 2026 chegar, você irá a uma concessionária autorizada, desembolsar uns 15 ou 16 milhões de reais e sairá literalmente voando por aí.
A Eve ainda aguarda o sinal verde da ANAC (Agência Nacional de Aviação Comercial) para zumbir nos céus. E existe a intenção de que num futuro próximo, elas voem de modo autônomo, tal qual seus amiguinhos drones; mas por ora, conduzidas por pilotos profissionais. Não serão grandes experts no assunto, já que é uma tecnologia nova, mas muito mais seguro que reles motoristas como você e eu dando fechadas celestiais na primeira esquina, eventualmente arranhando um ou outro arranha-céu.
Coisa bem diferente é pensada para o Jetson ONE, o modelo fabricado pelos suecos. Pesando ridículos 86 quilos, é um veículo para uso individual, quase um kart voador sem rodas. A regulamentação para um veículo deste tipo é extremamente mais complicada.
O Jetson ONE: pequeno, ágil e arriscado | Imagem: Jetson Aero
Trabalhando a jato
A entrada em operação destes sistemas de eVTOL gerarão benefícios além da simples mobilidade urbana. Obviamente, não se tratará de transporte de massa. Além do valor de aquisição, a Eve terá um custo de manutenção abaixo de um helicóptero executivo, mas sem dúvida nas alturas. Não será um modal barato.
Porém, irá gerar centenas, talvez milhares de empregos diretos e indiretos, desde a construção civil para a implantação dos vertiportos, até pilotos, técnicos, coordenadores de voo, equipes de solo, e vários serviços anexos.
Estamos no limiar do nascimento de um novo tipo de transporte. No início, será estranho ver aquelas “coisinhas” como moscas supervitaminadas passando sobre nossas cabeças. Mas serão rapidamente integradas à paisagem, assim como foram os automóveis que há mais de um século não assustam ninguém. A não ser quando paramos para abastecer. Aí, é pânico na certa.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.