Transporte: a r(evolução) dos cavalos
No início, seres humanos percorriam distâncias do jeito mais prático possível: à pé, e descalços. Não que isso fosse confortável e eficiente, mas era o único jeito possível. Qualquer distância era uma grande distância.
Duas linhas de raciocínio nasceram daí. Um lado pensou num resultado rápido, desenvolvendo o Projeto Sapato. Sim, bem melhor, os pés doíam menos, mas ainda assim as caminhadas continuavam cansativas e demoradas. Ainda não era razoável.
A segunda linha de raciocínio buscava resultados mais práticos. Algo que fosse realmente eficaz, poupando caminhadas.
Nesta época, os humanos começaram a domesticar os animais. E se de repente algum bicho pudesse servir como meio de transporte? Era um conceito novo, e precisava ser testado.
Foi então iniciado o Projeto Cachorro. Nesta época, já considerado o “melhor amigo do homem pré-histórico”, não rendeu bons resultados. Além de pequenos, frágeis, incapazes de suportar o peso de um Homem de Cro-Magnon, os cães concluíram que esse tipo de amizade não era interessante e caíram fora, ganindo.
Logo depois, a equipe de testes elegeu a vaca, velha conhecida e provedora de leite, como meio de transporte. A vaca era resistente, mas além de lenta, consumia muito combustível, precisando abastecer no primeiro pasto. Funcionava bem melhor no setor de produção de laticínios e o Projeto Vaca foi realocado. Em outras palavras, a ideia de usar a vaca logo foi pro brejo.
Registros em pedra lascada dão conta que no sudeste asiático foram feitos testes com tigres. Ágeis, resistentes e velozes. Os precursores dos modelos esportivos. O Projeto Tigre foi interrompido devido ao mau humor dos felinos, resultando numa trágica diminuição dos integrantes da equipe de testes local.
De volta aos testes
Mas o humano pré-histórico deveria ser brasileiro, pois não desistia nunca. Pouco tempo depois, foi iniciado o Projeto Cavalo. Havia inúmeras vantagens. Fortes, ágeis, domesticáveis, e apesar de inicialmente arredios, são herbívoros, vantagem inconteste em relação aos tigres.
Sucesso instantâneo de mercado, o cavalo logo ganhou as trilhas, estradas e picadas mundo afora. O modelo, combinando característica esportivas e utilitárias, podia ser usado em ambiente rural ou urbano.
Com a passagem do tempo, diminuição de predadores e cura para algumas moléstias, as famílias humanas passaram a crescer vertiginosamente. Mesmo com o sucesso de outro modelo bastante popular, o Jumento, logo foi percebido um problema sério de design nos cavalos: não permitiam mais de três passageiros, sob risco de estourar a suspensão.
Neste período da História, outro inventor visionário, egresso das cadeiras de rocha da Universidade de Neanderthal, havia criado a RodaⓇ, originalmente como decoração para a sala de estar da mulher pré-histórica moderna.
Porém, um dos trogloditas responsáveis pelo Projeto Cavalo tropeçou numa roda atirada no meio da rua por algum comprador insatisfeito. Percebeu originalmente que a roda sozinha não tinha utilidade alguma como meio de transporte, sendo bastante arriscado seu uso sem capacete, que também não haviam inventado.
Mas, homem das cavernas de visão que era, concluiu que a junção de duas rodas, unidas por um eixo e sobrepostas por uma plataforma, tinham potencial. Mas infelizmente ninguém havia inventado o motor.
Nosso amigo coçou a cabeça, e enquanto se deliciava com um inseto crocante retirado de suas madeixas, percebeu que nem precisava de muita coisa. Só a força de um ou dois cavalos.
Uma lâmpada (talvez, uma tocha) acendeu sobre sua cabeça: e se amarrasse à plataforma um ou dois cavalos? De quebra, ainda deu origem ao conceito “cavalo de força” utilizado até hoje!
Nasceu assim a ideia da carroça; finalmente, o chefe de família das cavernas podia ir à praia com rapidez, levando a esposa, quatro filhos, cachorro selvagem e a sogra sem fazer força. Estava inaugurado o turismo de um dia. Pena não inventar o conceito de rodovia ao mesmo tempo.
Momento Flintstones à parte, cavalos e carroças fizeram sucesso. Tanto que ainda hoje rodam juntos e felizes por aí.
E agora?
Atualmente, depois que inventaram o motor (acredite, nossos trogloditas e suas equipes de teste não descansaram), não há mais sentido obrigar os pobres equinos a trabalhos forçados. Merecem uma boa aposentadoria. Ou quem sabe uma virada na carreira, como comentaristas esportivos no Fantástico.
Via de regra, há poucos cavalos nas cidades fazendo esse tipo de atividade. Em municípios turísticos, entretanto, charretes (uma derivação popular das carroças, assim como as sofisticadas carruagens) são bem comuns. São um atrativo charmoso para os passeios.
Este é, ou era, o caso de Poços de Caldas, estância hidromineral localizada no sul de Minas Gerais. Há décadas, casais e famílias fazem o circuito turístico da cidade, a bordo das simpáticas charretes.
Os cavalos, por sua vez, entreolharam-se questionando o que estavam fazendo ali, servindo de burros de carga para os humanos. Apesar da evidente discordância dos burros, o assunto não prosperou, caso contrário teríamos assistido uma rebelião em dose cavalar.
Mas a redenção equina finalmente chegou. Depois de muita reclamação por parte de associações de proteção animal, de moradores em geral, vereadores e imprensa local (veja bem, os cavalos não estavam sós em seu questionamento), a cidade passou a contar com charretes elétricas.
Futuro com jeito de passado
Com um visual retrô, o modelo é mais sofisticado que as tradicionais charretes. O estilo emula o século 19, e não é por acaso; um dos maiores impulsionadores do turismo regional foi Dom Pedro II, fã confesso das águas locais.
A charrete elétrica foi desenvolvida em conjunto pela PUC Minas e pelo Instituto Federal do Sul de Minas, a pedido da prefeitura, cansada de tanto protesto. Patrocinada pela empresa municipal de energia, serviu instantaneamente de vitrine para os projetos de mobilidade urbana e principalmente sustentabilidade.
O projeto foi desenvolvido em relativo silêncio. Tanto que nos últimos meses a população passou a ver as obras de uma curiosa estrutura dentro do terreno da antiga Estação Ferroviária. Com linhas modernas mas sem revelar a função, era o primeiro posto de abastecimento elétrico em construção. Depois de revelado o destino, ficou a interrogação: pra quê um posto de abastecimento elétrico numa cidade que tem pouquíssimos veículos deste padrão? Agora já há a resposta.
Produzida em aço carbono, a charrete elétrica mineira tem autonomia de 50 quilômetros por carga completa. Parece pouco, mas é mais do que suficiente para fazer o percurso turístico algumas vezes. E a parada para reabastecimento total não passa de meros 40 minutos.
Pesando 410 quilos, tem quase quatro metros de comprimento por 1,60 de largura. Assim como a versão puxada por cavalos, a velocidade não ultrapassa os 30 quilômetros por hora. Não é muito diferente do que faziam as charretes de tração animal, nem os primeiros automóveis, que curiosamente se pareciam muito com charretes sem cavalos.
Os condutores das charretes elétricas serão justamente os mesmos pilotos das charretes “analógicas”, ou movidas a cavalo. A administração municipal vem treinando os charreteiros para estar habilitados a dirigir os novos veículos pela cidade com segurança, entrando em operação comercial em 2 de novembro, data do aniversário de 150 anos da cidade.
Pioneirismo, ou quase
Apesar de Poços de Caldas chamar para si o pioneirismo com as charretes elétricas, não está sozinha na empreitada. Desde 2019, Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, passou a contar com sua versão, para felicidade dos cavalos. A chamada “Vitória Elétrica” é bastante similar à sua irmã mineira.
Lá, diferente de Poços de Caldas, a decisão da substituição não partiu diretamente do poder público: durante o primeiro turno das eleições de 2018, um plebiscito garantiu que os cavalos (e as velhas charretes) teriam sua tão sonhada aposentadoria.
Ainda assim, na cidade mineira, houve quem reclamasse. Não pelo fato do afastamento dos cavalos, mas sim pela falta – estética – que eles farão na paisagem. “Não seria melhor se na frente das charretes tivesse um cavalo robô?”, resumiu Ana Clara, estudante do sexto ano da rede municipal.
Neste momento, a velha equipe de testes formada no alvorecer da humanidade acaba de voltar às suas pranchetas de pedra, pensativa.
* colaborou Clarissa Blümen Dias
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.