Três autistas entram numa pizzaria, quatro saem
A crônica a seguir foi sugerida pela Head of Digital & Community Strategist da Prensa, Mrs. Bonassoli. Ou simplesmente Kell, para lembrar que a Prensa é feita por humanos; após ler o meu texto sobre Amor no Espectro. Recomendo ler o que escrevi da série, mas tanto pode ser antes quanto depois dessa crônica. Em comum, só existe o tema.
Deve ter sido em algum ponto de 2017, a Universidade Federal de Goiás deu início a um projeto de apoio mental para seus estudantes. Eu já estava formado, mas minha digníssima havia entrado na UFG para uma segunda graduação e lá descobriu esse projeto, o Saudavelmente.
No Saudavelmente, ela foi novamente diagnosticada como autista e passou a frequentar sessões em grupo com outras pessoas que estão no espectro autista. Vislumbrei uma chance dela fazer amizades, algo que sempre lhe foi difícil. Algumas semanas depois, resolvi tentar dar um empurrãozinho. Peguei o celular dela sem a devida autorização e mandei uma mensagem para o grupo convidando os integrantes para comer pizza.
Minha querida Any brigou comigo por isso, mas a mensagem já estava enviada e pessoas se manifestaram positivamente, para evitar o caso de ninguém ir, chamei também alguns amigos, mas apenas um compareceu. Acabou que apenas uma outra pessoa do Saudavelmente foi, o Otávio.
Os pedaços eram consumidos mais ou menos nessa frequência, a única diferença foi que era rodízio. (imagem:giphy.com/shakingfoodgifs)
Pizza vai, pizza vem… Fatias são devoradas e com isso as pessoas vão conversando. Atualidades, coisas nerds e rapidamente me dei bem com o Otávio, um outro estudante que frequenta o Saudavelmente e que estranhamente me parecia familiar, bem familiar…
PLOT TWIST
Eu já conhecia o Otávio!
Não quis falar nada na ocasião para não ficar um clima estranho, mas uns dias depois caiu a ficha e fui olhar umas fotos antigas no computador. Otávio e eu estivemos em uma festa para estudantes de uma instituição de ensino que foram aprovados no vestibular. Não estudamos juntos, não nos vimos pelos corredores, mas estivemos nessa festa.
Pelo penteado vocês conseguem deduzir quem passou num curso normal como engenharia e quem resolveu estudar publicidade. (imagem: acervo pessoal)
Conversamos bastante, tivemos uma interação legal e eu anotei o e-mail dele. Posso ter anotado errado, ele pode ter passado errado e negar isso até hoje, a questão é que não nos falamos depois disso, ele foi para faculdade em outro estado e a vida seguiu. Não se adaptou, voltou pra Goiânia e começou outro curso, desta vez na UFG.
Mandei uma foto dele na festa. Ele confirmou a identidade, mas afirmou que não sabia que foto era aquela. Mandei uma segunda foto, desta vez comigo ao lado dele. Choque, surpresa, grande revelação, a cabeça do pobre Otávio explodiu. Mas voltemos à pizzaria pois tem mais história.
Sabe o que vem depois da pizza doce num rodízio? Mais pizzas salgadas! (imagem: Laurene Gicquel - @indianashat - via Unsplash)
Pizza doce vai, pizza doce vem… Fatias são devoradas e todo mundo ali se entendeu bem. Até que meu veterano de faculdade e primeira amizade que fiz na vida adulta, Paulão, começa a ficar curioso e indaga como Any e Otávio se conheceram. Afinal, em teoria, eu tinha acabado de conhecer o Otávio ali na pizzaria. “_No grupo de autistas da UFG”.
Ao que o Paulão para um segundo e fala num tom bem mais baixo que seu usual: _Poxa, no meu tempo não tinha isso.
PLOT TWIST²
Paulão, meu amigo há uns 7 anos naquela época, também era um autista diagnosticado, mas nunca me disse nada!
Por essa nem eu esperava! (imagem: animalygifs - via Giphy)
Acasos são mesmo algo incrível, ali estava eu... Sentado com 3 pessoas que conheci em anos diferentes, em locais diferentes com contextos diferentes. Formei algum tipo de vínculo com cada um deles e nos reunimos em prol de um objetivo em comum: comer pizza!
Mas depois dessa descoberta é como se tivéssemos voltado ao começo da conversa, um novo assunto, um novo fôlego, um novo espaço adicional para fazer caber ainda mais fatias.
Ficamos lá até o lugar fechar praticamente, e antes do fim dessa reunião já estavam questionando que não teria como eu ter essa relação com os três e não estar, eu mesmo, dentro do espectro autista. Que, no mínimo, eu deveria receber uma carteirinha de membro honorário ou alguma coisa do gênero. Acabei sendo revelado como um ímã de autistas.
Por fim, ainda rolou um jargão de um antiquíssimo filme de terror: “One of us, one of us”, (Um de nós, um de nós)
Finalmente fui aceito em algum lugar! (imagem: Freaks, 1932)
A partir dessa noite eu passei a considerar a possibilidade, certamente existem semelhanças... Talvez eu seja mesmo um deles. Mas e a questão de eu olhar as pessoas nos olhos? De eu falar e falar bastante e falar mesmo que já tenham se cansado de me ouvir?
Foram alguns anos até entender e aceitar completamente que, mesmo sem essas características, eu faço parte do espectro. Inclusive com direito a uma tentativa frustrada de obter o diagnóstico e outra em andamento enquanto esse texto é escrito.
Otávio e Paulão são meus amigos até hoje. Otávio tá devendo uns contatos mais frequentes, mas imagina se vou deixar essa indireta salva para toda a posteridade aqui…
Any é minha amiga, mas também é minha esposa e meu amor. Soube em nosso segundo encontro que ela estava no espectro autista e soube depois de alguns meses que queria passar minha vida com ela.
Faz muito tempo que esse encontro na pizzaria aconteceu, o lugar até mesmo já fechou. Felizmente nos reunimos dezenas de vezes depois daquilo, em rodízios, pizzarias, sanduicherias e vários outros “rias” onde se come com os amigos. Mas ainda me lembro naquela noite. Quando três autistas entraram numa pizzaria e quatro autistas saíram.
Da esquerda pra direita: Paulão, Diulia (cota para pessoas de fora do espectro), Any, eu e Otávio. (imagem: acervo pessoal)
*As pessoas aqui citadas autorizaram o uso de seus nomes e imagens.
Imagem de capa - Klara Kulikova - @kkalerry - via Unsplash
Este artigo foi escrito por Gustavo Borges e publicado originalmente em Prensa.li.