A música por trás do filme e o filme por trás da música: o suspense na trilha sonora de "Psicose"
Olhando para a história do cinema, podemos dizer que os filmes de suspense tais como conhecemos hoje tem um pai: Alfred Hitchcock. O motivo é a singularidade dele em lidar com o conceito de suspense. Hitchcock parte do suspense como o condutor narrativo dos seus filmes. Planos de filmagem, roteiro, direção, trilha sonora, todas essas coisas são articuladas de modo a compor um suspense. E “Psicose”, lançado em 1960, é um excelente exemplo disso. No caso específico da trilha sonora, feita pelo singular compositor Bernard Hermann, vamos perceber que a composição dela é em sua maior parte formada a partir de pequenos motivos melódicos que se repetem ao longo do filme. Igual ao tema do Darth Vader, à música de “Tubarão”, ou à música dos hobbits… Aquelas frases melódicas curtas que se tornam marcas de personagens e de filmes. Enfim, a ideia aqui nesse texto é mostrar como essa associação entre música e personagem pode, e muitas vezes é utilizada no filme inteiro. E mais do que isso, mostrar como isso pode ajudar a construir tanta tensão, no caso dos filmes de suspense e, em específico, no filme “Psicose”.
A construção do suspense
Mas antes de tudo, vamos tentar entender como a gente, ou melhor, como o diretor do filme pode vir a utilizar diversos recursos técnicos em função de um sentido narrativo específico: o suspense.
A construção do suspense em Hitchcock é muito bem delimitada, inclusive por ele próprio: “O mistério é um processo intelectual. [...] O suspense é essencialmente um processo emocional” (HITCHCOCK, 1970). Ou seja, o que ele parece estar querendo dizer é que “mistério”, “medo” e “suspense” não são sinônimos. Hitchcock em muitas situações fez questão de apontar que mistério e suspense são conceitos distintos. Mistério, como o nome indica, seria mais a intenção de mistificar, ou seja, formar enigmas, quebra-cabeças e consequentemente formar também resolução “racional” desses enigmas. Já o suspense, por sua vez, seria uma forma de manipular as emoções do espectador para que ele sinta medo. Essas duas coisas, mistério e suspense, de fato podem estar presentes em um mesmo filme e em uma mesma cena. Não só podem, como é muito comum que isso ocorra. E por isso mesmo é que às vezes não fazemos essa distinção. Mas Hitchcock faz bem ao insistir nessa diferenciação e nos mostrar que esses são processos distintos.
Para tentar explicar isso de um modo mais claro, vamos imaginar uma cena de um filme. O suspense tende a ocorrer quando a montagem dessa cena permite o espectador a ter informações além daquelas que as personagens do filme possuem. Este acúmulo de informações geram o suspense na medida em que o espectador acaba construindo cenários possíveis de continuação da narrativa à frente da consciência dos protagonistas. É aquele tipo de cena em que você sabe que o protagonista está em perigo, mas ele mesmo não tem noção nenhuma disso, ou pelo menos, não tem tanta noção quanto nós, que estamos assistindo. Isso tende a nos deixar aflitos e com medo, porque começamos a prever o que de ruim pode acontecer com aquela personagem. Já em uma cena em que, por exemplo, a gente precise “ligar os pontos”, fazer um exercício reflexivo de perceber referências ocultas, mensagens implícitas no cenário, na trilha sonora, na roupa da personagem… A esse tipo de cena, o que está em jogo é o mistério, pois precisamos desmistificar alguma coisa para conseguirmos entender completamente a cena. Bons exemplos disso estão em filmes como Amnésia (2000), O Sexto Sentido (1999), Donnie Darko (2001)... Esses dois recursos, o mistério e o suspense são muito utilizados conjuntamente e não existe uma hierarquia entre eles. Mas são processos distintos. Cada diretor buscará se apropriar desses recursos do modo que melhor lhes parecer e é isso que, felizmente, nos permite uma variedade de estilos de filme dentro de um mesmo gênero.
Então, retomando, o suspense está em muitos casos ligado a essa diferença entre aquilo que a personagem sabe e aquilo que o espectador sabe. Mas isso pode acontecer de diferentes maneiras no filme. O diretor ou o roteirista pode colocar algum narrador na história que passe mais informações para o espectador, por exemplo. Pode ainda colocar informações no cenário que o espectador consiga ver, mas a personagem do filme não. Pode ser inserida uma música que dê mais informações ao espectador, seja na letra ou ainda em melodias reconhecíveis pelo espectador. Enfim, o suspense pode ser construído de diversas formas. Veremos que a trilha sonora de“Psicose”, composta por Bernard Hermann é uma dessas formas em se provocar o suspense.
Alerta de spoiler do filme “Psicose”- a partir de agora entraremos em mais detalhes sobre o filme. Se você leu até aqui, se interessou, mas ainda não viu o filme, assista e volte para conferir a análise :)
Psicose
“Psicose” pode ser dividido em dois grandes arcos narrativos. O primeiro deles é aquele no qual acompanhamos a protagonista Lila Crane (Vera Miles) desde o momento em que acorda junto ao seu namorado Sam Loomis (John Gavin), passando por sua fuga da cidade com o dinheiro furtado de seu patrão, até a sua morte no Bates Motel. Crane é a única personagem do filme que acompanhamos de modo tão íntimo: o filme se inicia e a vemos de lingerie em sua cama, ao lado seu namorado; a vemos também fugindo da cidade com o dinheiro furtado de seu chefe; vemos seu desconforto em conversar com um policial, tal como acompanhamos seu comportamento suspeito ao conversar com o vendedor de automóveis; vemos sua insegurança ao chegar ao Bates Motel, seu relativo conforto ao conversar pela primeira vez com Norman Bates (Anthony Perkins), e a vemos em seu momento mais íntimo: seu banho, a clássica cena do banheiro e do assassinato de Crane.
Até esta última cena, já foram rodados 50 minutos de filme e foram poucas as cenas em que acompanhávamos outros personagens. Assim, fica claro como o primeiro arco narrativo é conduzido quase exclusivamente a partir da personagem Lila Crane. Esta primeira parte do filme aponta para caminhos importantes na construção do suspense. Um exemplo é a cena na qual Crane dirige seu carro, enquanto ouvimos a conversa de um policial com um vendedor de automóveis. Esta conversa aponta para nós espectadores, um possível risco de perseguição policial e ataque a nossa tão íntima personagem Crane. Um outro caminho que constrói tensão é apresentado na cena em que Norman Bates, através de um buraco na parede, espiona Lila se despindo em seu quarto no motel. Temos também o intenso clima desconfortável, em um corte extremamente rápido, enquanto Crane toma banho e vemos, através da cortina do banheiro, alguém se aproximando. Essas cenas todas vão, de pouquinho a pouquinho, nos apresentando diversos riscos à nossa protagonista. O ápice desta condução narrativa termina com a aclamada cena do assassinato no banheiro: com uma profundidade de 70 planos diferentes de filmagem, com uma trilha sonora estridente e com o final de uma tensão que vinha sendo criada durante todo o filme, é fechado o primeiro arco narrativo do filme. Todo aquele suspense que vínhamos sentindo pouco a pouco durante o filme é concretizado com a morte da protagonista.
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Com a morte de Crane, se inicia um segundo arco narrativo. Agora não temos mais uma condução da história focada em um único ponto de vista, em uma única personagem, mas uma condução difusa, com diferentes pontos narrativos Acompanhamos o jovem Bates e os diversos personagens que investigam o desaparecimento de Crane. Assim, a construção narrativa é mais pulverizada, o que consequentemente aumenta o acesso de informações do espectador, o que contribui também para o aumento de suspense: a cena da escadaria com o detetive Arbogast (Martin Balsam) na Mansão Bates é tão mais intensa pois sentimos que no segundo andar há alguém para interceptá-lo. Essa pulverização de perspectivas de narrativa permite novos espaços para se construir suspense, na medida em que elabora tensão com cada um dos personagens: temos a criação de tensão quando acompanhamos a investigação de Arbogast, que por sinal, também morre. Em paralelo, acompanhamos o namorado e a irmã de Crane que, diferentemente de nós espectadores, eles não têm notícias a respeito do final trágico do detetive. Acompanhamos ainda, apesar de maior distanciamento, algumas cenas dentro da mansão Bates pouco explicativas, mas que nos conduzem a maior tensão, uma vez que vemos isoladamente Norman Bates e sua suposta mãe. Não sabemos de tudo sobre a mansão, sobre a mãe e sobre o jovem Bates, é verdade. Mas sabemos que todo mundo que vai para lá corre sérios riscos de vida e, então, toda vez que algum dos personagens vai para lá, sem saber desse perigo, ficamos em suspense.
Trilha sonora
Diante disso, o ponto a ser demonstrado aqui e agora é que a trilha sonora do filme está, em maior parte, montada de modo a reforçar o suspense das narrativas destes dois arcos da história. A trilha em si é constituída num total de 34 inserções em todo o filme, a partir de diferentes temas. Isso significa que, durante todo o filme, aconteceram 34 cenas que continham música, sendo o restante do filme composto de diálogos ou cenas em silêncio. Dentre todas estas 34 inserções, há 4 principais temas musicais que serão recorrentes no filme: “Prelude”, “The City”, “Temptation” e “The Murder”.
O filme se inicia já com uma cena musicada, onde é exposto os créditos iniciais do longa. O primeiro tema musical, originalmente denominado como “Prelude” apresenta uma melodia marcante que só será executada em momentos de tensões vivenciados por Lila Crane. Como, por exemplo, na cena em que ela troca olhares com seu chefe na rua, enquanto foge da cidade, sendo que ela está em fuga justamente por roubar o dinheiro dele. Este tema musical “Prelude” é também exposto logo após a conversa de Crane com um policial e é executado uma última vez quando esta sai da loja de automóveis com seu novo carro, na tentativa de despistar qualquer perseguição. Como podemos perceber, este tema é executado sempre em que Crane passa por algum tipo de desconforto, mas que não a imobiliza e também não interrompe o arco narrativo. É uma música que vai nos mostrando que alguma coisa tá errada, estranha. Assim, há um constante desconforto por parte de nós espectadores que vamos acompanhando uma série de tensões, mas que não são resolvidas, apenas são deixadas para trás.
Um segundo tema musical é primeiramente executado logo após os créditos iniciais, onde começa de fato as filmagens do filme. Este segundo tema é denominado “The City” e é executado inicialmente junto às filmagens da cidade de Phoenix, Arizona, situando o espectador ao local da história. Bem mais lento que “Prelude”, esta música também apresenta uma melodia bem característica e servirá como um segundo motivo melódico. É ao final da primeira execução deste tema que temos o primeiro contato com as personagens Loonis e Crane, ao acordarem na cama, em um clima descontraído. As próximas execuções deste segundo tema acontecem, tal como o primeiro tema, em momentos de tensão vividos por Crane. Mas, se o primeiro tema é executado logo após algum desconforto de Crane, este segundo tema é executado em situações de plausíveis exposições à riscos por parte da protagonista. Esta exposição, porém, não é percebida ou não é sentida pela protagonista, mas evidenciada apenas aos espectadores (a partir da trilha sonora). Sendo assim, este tema musical nos conduz a um estado de vigília na medida em que aponta momentos desconfortantes vividos pela personagem. Exemplo disso é o momento em que Crane chega à loja de automóveis, totalmente exposta em público e o policial a vigia. Outro momento em que é executado o tema é quando Crane fica sozinha com Norman Bates e temos novamente um momento de tensão e vigília. Por último, este tema é executado, embora com variações, na cena em que Bates espiona Crane através do buraco da parede e a vê se despir.
Para completar os diversos leitmotivs em torno da protagonista Crane, temos ainda um último, intitulado “Temptation”. Este é executado em momentos mais específicos e que dizem respeito à fuga e furto de Crane. Ou seja, nas cenas em que ela arruma suas malas para fugir de Phoenix, na cena em que ela vai ao banheiro para pegar o dinheiro e comprar o carro, e por último, na cena em que ela, já no Bates Motel, procura algum modo seguro de esconder o dinheiro. Como podemos notar até aqui, a trilha ocorre intensamente em função da personagem Crane, e reforça toda a construção deste primeiro arco narrativo.
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De agora em diante, com a cena do assassinato, a trilha ocorrerá de modo mais difuso, acompanhando, portanto, a perspectiva de narrativa do filme. Este segundo arco se inicia com “The Murder”. Essa é a música que todo mundo reconhece, até mesmo quem nunca assistiu ao filme. Enquanto assistimos o filme pensamos ser esse tema musical associado à senhora Bates, pois essa música é tocada enquanto vemos o vulto de alguém que se parece com ela. Ao final do filme descobrimos que na realidade, era o jovem Bates transvestido com as roupas de sua já falecida mãe. Este tema, estridente, e intensamente dissonante se apresentará nas próximas aparições da suposta senhora Bates no filme, aumentando o nosso grau de perspectiva narrativa do filme.
Há ainda um outro tema, semelhante ao “The City”, que aponta os momentos de tensão vividos pela irmã de Lila Crane. Sendo irmãs, se torna coerente o fato de serem duas músicas parecidas. E, por fim, temos um último tema, "The Swamp”, executado inicialmente quando Norman Bates coloca Crane já morta em seu carro e o joga no pântano. Este tema é executado pela segunda e última vez na última cena do filme, quando este mesmo carro é encontrado e retirado do pântano pela polícia. Resumindo:
“Prelude”: executado quando Crane passa por algum tipo de desconforto, mas que não a imobiliza e também não interrompe o arco narrativo;
“The City”: executado em situações de risco vividas por Crane. Nos conduz, portanto, a um estado de vigília na medida em que aponta momentos desconfortantes vividos pela personagem;
“Temptation”: executados em momentos de fuga e furto de Lila Crane;
“The Murder”: executado em cenas de assassinato do filme, atribuídos supostamente a senhora Banes;
Fora estes temas, há ainda no filme diversos outros que são executados apenas uma única vez, mas que também não deixam de construir o drama narrativo do filme: a cena em que o detetive Arbogast sobe a escada da Mansão Bates, ou ainda o tema executando durante a limpeza do banheiro que, juntamente com as cenas sem música onde se escuta apenas o barulho do chuveiro ligado e se vê a cena do crime, é criado mais um clima de tensão para o filme. Assim, em um arremate final, as músicas do filme estão muito íntimas ao percurso narrativo do filme. Só sentimos o suspense que sentimos no filme também por causa da música.
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Enfim, são por coisas como essas que “Psicose” é revisitado enquanto um grande clássico do cinema. Afinal, apesar de diversas limitações tecnológicas enfrentadas pela época em que foi produzido, o filme possui uma montagem muito consistente, que funciona muito bem. A clássica música do assassinato (“The Murder”) é clássica justamente por conseguir transmitir para uma cena uma tensão muito grande. Todo o suspense e mistério que se encaminhou na narrativa do filme estava ali de lado a lado com a música tocada.
O texto foi longo e ainda sim há muito mais o que se ouvir e sentir na trilha sonora desse filme e não só os elementos que tentei mostrar nesse texto. De qualquer modo, o que pensamos juntos até aqui pode nos ajudar a dar um primeiro passo de análise em relação a trilha sonora dos filmes e pensar um pouquinho sobre tudo o que elas são capazes. Uma tentativa de buscarmos refletir sobre a música que está nas histórias dos filmes e também sobre as histórias das músicas que estão nesses. Afinal, há sempre muita história pra contar, e o cinema nos mostra bem isso.
Referências
HERMANN, Bernard. Psycho (Original Soundtrack). 1960. Link para acesso: Psycho - Soundtrack - Full Album (1960) - YouTube
HITCHCOCK, Alfred. North by Norwest. Metro-Goldwyn-Mayer (MGM). 136 min. 1959
HITCHCOCK, Alfred. Psycho. Shamley Productions. 109 min. 1960
HITCHCOCK, Alfred. The Difference Between Mystery and Suspense. AFI Seminar. 1970. Link para acesso: Alfred Hitchcock: The Difference Between Mystery & Suspense - YouTube
Imagem da Capa - Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, e compositor da trilha sonora de ""Psicose"" e de muitos outros filmes de Hitchcock. Créditos e uso desta imagem CC 2.0: https://www.flickr.com/photos/39527581@N07/26213522900https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/
Este artigo foi escrito por Esdras Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.